O pequeno mistério


Assim, preferem-se cabazes de alimentos, com o pobrezinho agradecido e curvado perante o seu salvador, a prestações financeiras públicas


Tenho falado com várias pessoas intrigadas com o potencial bom resultado que a coligação PSD/CDS poderá vir a obter nas eleições legislativas de 4 de Outubro, venha a ganhá-las ou não. Um governo que durante quatro anos executou políticas contrárias às que prometeu, aumentou de forma relevante impostos, proporcionou um aumento do desemprego e da emigração, etc., etc. Qual o truque, a confiar minimamente nas sondagens?
Há alguns aspectos talvez menos evidenciados, mas que provavelmente têm também a sua dose de importância na explicação.
Desde logo, boa parte das restrições financeiras e outras incidiram especialmente sobre os funcionários públicos, seguindo, aliás, a linha traçada pelo último governo PS. Estes, naturalmente, podem não ter ficado exultantes de alegria, nem com o último governo PS nem com o actual, mas representam apenas uma parte, mesmo que relevante, do eleitorado. 
Para a parte restante, que não trabalha para o Estado, e dado também o nível do discurso público que acompanhou a crise em relação ao Estado e aos seus servidores, um dos grandes males do país está precisamente nesses funcionários, a seu ver uns privilegiados preguiçosos que deveriam conhecer o que é a vida real e quanto custa a ganhar um euro. Ora foi isso mesmo que o governo PSD/CDS lhes ofereceu: uma vindicta, relativamente primária, é certo, mas directa, sobre quem, a crer na linguagem dos últimos anos e no contexto das últimas décadas, lhes exauriu os cofres públicos.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser aplicado na relação entre jovens trabalhadores e pensionistas. Os primeiros, especialmente se têm algum nível de conforto remuneratório, querem assegurar-se de que os segundos estão, pelo menos, suficientemente alerta para o défice moral que crêem existir e não lhes ser reconhecido por parte dos reformados. “Aqui estou eu a trabalhar e a pagar a reforma destes, mas quando chegar a minha vez já não haverá reformas para ninguém”: eis o défice moral em causa que deverá ser caucionado em permanência e que o governo soube alimentar.
Outro tipo de raciocínio que agora emerge é o da crítica às claras ao que é visto como a sobreutilização e, especialmente, uma utilização ilegítima de ferramentas de solidariedade social: em termos directos, aqueles que pagam impostos contra aqueles que supostamente abusam do “Estado social”. Quando o PS vem propor a reposição de subsídios e falar de combater as desigualdades, agora há muito mais gente que se sente à vontade para ser “politicamente incorrecta” e exigir que haja uma espécie de auto de contrição público e identitário – “eis-me pobre e incapaz” – no recurso a uma caridade suportada pelo Estado. Assim, tal como o actual governo aplicou, preferem-se cabazes de alimentos, com o pobrezinho agradecido e curvado perante o seu salvador, a prestações financeiras públicas que, necessariamente, iriam servir o grande vício dos pobres que é, como todos sabem, a ociosidade. Ora isto é talvez difícil de assumir publicamente, mas no recato das urnas tem o seu espaço.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira

O pequeno mistério


Assim, preferem-se cabazes de alimentos, com o pobrezinho agradecido e curvado perante o seu salvador, a prestações financeiras públicas


Tenho falado com várias pessoas intrigadas com o potencial bom resultado que a coligação PSD/CDS poderá vir a obter nas eleições legislativas de 4 de Outubro, venha a ganhá-las ou não. Um governo que durante quatro anos executou políticas contrárias às que prometeu, aumentou de forma relevante impostos, proporcionou um aumento do desemprego e da emigração, etc., etc. Qual o truque, a confiar minimamente nas sondagens?
Há alguns aspectos talvez menos evidenciados, mas que provavelmente têm também a sua dose de importância na explicação.
Desde logo, boa parte das restrições financeiras e outras incidiram especialmente sobre os funcionários públicos, seguindo, aliás, a linha traçada pelo último governo PS. Estes, naturalmente, podem não ter ficado exultantes de alegria, nem com o último governo PS nem com o actual, mas representam apenas uma parte, mesmo que relevante, do eleitorado. 
Para a parte restante, que não trabalha para o Estado, e dado também o nível do discurso público que acompanhou a crise em relação ao Estado e aos seus servidores, um dos grandes males do país está precisamente nesses funcionários, a seu ver uns privilegiados preguiçosos que deveriam conhecer o que é a vida real e quanto custa a ganhar um euro. Ora foi isso mesmo que o governo PSD/CDS lhes ofereceu: uma vindicta, relativamente primária, é certo, mas directa, sobre quem, a crer na linguagem dos últimos anos e no contexto das últimas décadas, lhes exauriu os cofres públicos.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser aplicado na relação entre jovens trabalhadores e pensionistas. Os primeiros, especialmente se têm algum nível de conforto remuneratório, querem assegurar-se de que os segundos estão, pelo menos, suficientemente alerta para o défice moral que crêem existir e não lhes ser reconhecido por parte dos reformados. “Aqui estou eu a trabalhar e a pagar a reforma destes, mas quando chegar a minha vez já não haverá reformas para ninguém”: eis o défice moral em causa que deverá ser caucionado em permanência e que o governo soube alimentar.
Outro tipo de raciocínio que agora emerge é o da crítica às claras ao que é visto como a sobreutilização e, especialmente, uma utilização ilegítima de ferramentas de solidariedade social: em termos directos, aqueles que pagam impostos contra aqueles que supostamente abusam do “Estado social”. Quando o PS vem propor a reposição de subsídios e falar de combater as desigualdades, agora há muito mais gente que se sente à vontade para ser “politicamente incorrecta” e exigir que haja uma espécie de auto de contrição público e identitário – “eis-me pobre e incapaz” – no recurso a uma caridade suportada pelo Estado. Assim, tal como o actual governo aplicou, preferem-se cabazes de alimentos, com o pobrezinho agradecido e curvado perante o seu salvador, a prestações financeiras públicas que, necessariamente, iriam servir o grande vício dos pobres que é, como todos sabem, a ociosidade. Ora isto é talvez difícil de assumir publicamente, mas no recato das urnas tem o seu espaço.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira