Café Central. A cura está em São Marcos  da Serra

Café Central. A cura está em São Marcos da Serra


No Algarve profundo, a antiga terra de um médico conhecido por tratar pobres sem pedir dinheiro tenta lidar com a monotonia o melhor que pode. Talvez a cura agora esteja mesmo no Café Central.


São Marcos da Serra. Se ao pronunciar este nome expressões como “onde Judas perdeu as botas” – para não usar outras com palavrões de que nos estamos agora a lembrar – começam a aparecer na sua cabeça, estava certo. Certamente foi aqui que Judas deixou as suas botas depois de uns medronhos a mais no Café Central.

{relacionados}

Podiam estar mesmo ali, nos degraus da igreja em frente, ou já sem atacadores no miradouro onde foi erguido o busto de Bernardino Ramos.

Bernardino Ramos? Não, não faltou a nenhuma lição de história. As pessoas da aldeia com 1366 habitantes (contas de 2011) sabem bem quem ele é. “Um médico muito famoso aqui”, apresenta Paulo Bárbara, de 37 anos, filho de Noélia Silva, de 58 anos, a proprietária do Café Central. “Conheci-o pessoalmente.”

Pelos vistos, o médico não tem star quality suficiente para uma entrada na Wikipédia (alguém de São Marcos da Serra que trate disso), mas o site da junta de freguesia explica melhor quem foi o “respeitado” senhor: “Muitas pessoas vinham de longe para serem curadas e, num acto compreensivo, o dr. Bernardino Ramos curava os pobres sem pedir dinheiro em troca.”

Por agora, uma conversa no Café Central, estabelecimento fundado em 1962, parece ser a cura para uma tarde de calor entre a serra de Monchique e a serra do Caldeirão. E até nos oferecem uma água e uma mini para refrescar (a casa não tem ar condicionado, mas no Inverno costumam “acender uma salamandra”).

Na TV, Tony Carreira canta para o único espectador numa mesa que lhe parece dar atenção. Noutra, Joaquina Guerreiro, de 66 anos, e professora primária durante 33, afunda a cabeça no “Correio da Manhã”, mas sempre a prestar atenção à nossa conversa. 

Mais tarde, havia de nos contar que chegava a fazer 13 quilómetros a pé todos os dias para ir dar aulas a uma escola nas redondezas. “E com os dois filhos ao colo.”

JANTAR DE NATAL

Paulo e a mãe compraram o café em 1995 a um antigo proprietário que já não estava para ali virado. “O senhor que tinha isto só abria às vezes, mas nós abrimos sempre, nunca fechamos.” Cumprem o horário de tal forma que até no Natal ali estão. “Já fizemos aqui um jantar de Natal umas duas ou três vezes”, conta. “E até chamámos alguns clientes.”

Quando compraram o café, São Marcos da Serra tinha mais movimento do que hoje em dia. “Tinha mais malta nova e o café trabalhava bem. Agora, a maior parte das pessoas daqui tem mais de 60 anos.” A tal “malta nova” fugiu toda para o mesmo sítio onde está o país inteiro em Agosto, “ali para baixo, em Albufeira, Portimão, essa zona aí onde há trabalho”. 

QUINTA DE ODELOUCA

Albufeira ainda fica a uma distância de segurança de 30 quilómetros de estradas sinuosas, e turistas em São Marcos só de vez em quando – por isso, não é de estranhar que toda a gente olhe para nós quando passamos na rua e quando estacionamos o carro. 

“Esporadicamente vem aqui um casal ou dois”, diz Paulo. “Temos um parque de campismo aqui perto e de vez em quando vem cá alguém.” O campismo de que fala é o da Quinta de Odelouca, perto da ribeira com o mesmo nome, maioritariamente frequentado por estrangeiros e um dos sítios obrigatórios na lista dos parques de campismo escondidos a visitar.

AH, A MONOTONIA

“A vida aqui é muito monótona”, continua Paulo. De facto parece ser, mas não temos nada contra a monotonia. E até nos podíamos sentar com os velhotes à porta do café a ver quem passa na estrada. Pouca gente, ainda assim, e o bocejo começa a apoderar–se de nós. A atracção do dia é um miúdo num triciclo e fazer uma sesta é tudo em que conseguimos pensar.

Joaquina, a antiga professora primária, não tem tempo sequer para pensar em como seria bom uma sesta. Em São Marcos, e apesar de ser tudo “muito calmo” e de serem “sempre as mesmas pessoas”, tem a agenda preenchida. 
Costuma encontrar-se com amigas e antigas colegas da escola no Café Central e, fora esses momentos de lazer, ocupa o tempo entre explicações e o trabalho numa instituição de caridade. Uma canseira, mas nada que se compare com a altura em que tomava conta de uma turma de “32 alunos das quatro classes”.

MÁQUINAS QUE VÊM DOS MONTES

De repente, e mesmo debaixo dos nossos olhos, reparamos na verdadeira atracção do café, muito cobiçada por quem passa: as mesas, feitas com antigas máquinas de costura Singer. 

Não estão para venda apesar dos inúmeros pedidos (e até pensamos numa proposta e se caberiam no carro). Nada disso, da casa não vão sair. Foram feitas com “máquinas que já estavam encostadas de pessoas aí dos montes”, explica Paulo, e são de fazer inveja a esses mercadinhos do vintage urbanos.

São Marcos da Serra chama-se assim em homenagem a São Marcos, “o escritor do evangelho mais antigo e mais curto da Bíblia”, e em honra a isso também não nos vamos demorar mais que já se faz tarde e o caminho pela serra não é fácil.