José Andrade, que no sábado passado morreu em plena prova de geocaching no Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros, não era propriamente um caçador de tesouros mas sim alguém que gostava de desafios e de testar o próprio corpo.
Quando em 1970 entrou no Instituto Nacional de Educação Física para se tornar professor, destacava-se por um físico poderoso, embora não fosse muito alto, e por uma atitude muito reservada.
Era um nadador de eleição, tinha a garra de um leão e a resistência de um corredor queniano, e sobressaía por uma generosidade e entrega ao jogo colectivo que o levava a ser desejado por qualquer equipa de competição. Foi assim que só com um treino de râguebi realizado no CDUL passou a titular da equipa principal. Foi também assim que o grupo de forcados da sua terra natal, a cidade de Tomar, o convenceu a saltar para a arena e a pegar um touro pelos cornos – não porque tivesse necessidade de se afirmar como valente, mas pela singularidade da sua personalidade generosa: se os amigos iam atirar-se a um touro, ele não deixaria de ajudar.
O râguebi e a tourada deram-lhe cabo dos joelhos. Foi sujeito a cirurgias, ainda novo. Com alguma limitação física, prosseguiu a carreira de professor de Educação Física na Escola de Santa Maria do Olival, em Tomar.
Um dia a família ofereceu-lhe uma moto de crosse que lhe permitiria rasgar montanhas em velocidade. Voou serra acima e estampou-se – ficou horas com a moto em cima de uma perna, à espera de ajuda, e nunca mais o joelho foi o mesmo.
Acabou por se reformar e desde então preferia deslocar-se de bicicleta. Era habitual percorrer mais de meia centena de quilómetros num dia.
Com dois filhos novos por companhia, assim como a mulher, Luísa, sempre apoiante das suas aventuras (ela própria professora de Educação Física), dedicou-se ao aeromodelismo, um desporto financeiramente exigente, e tanto se apaixonou por ver os aviõezinhos a cruzar os céus que um dia olhou para a conta bancária e resolveu mudar de actividade.
Descobriu o geocaching e aos 62 anos acumulava troféus. Descobria “tesouros” no meio das montanhas, nas praias e até dentro de água – valendo-se da capacidade natatória de excelência.
Esta derradeira aventura representava, no fim de contas, o regresso à infância, aos tempos em que observava o pai nas provas de escuteiro. O pai, coronel Mário Marques de Andrade, vira a sua vida militar interrompida por ordem de Salazar, pois era chefe do Estado-Maior em Goa quando a Índia portuguesa caiu. Salazar mandara resistir até à morte, o general Vassalo e Silva rendera-se ante o desequilíbrio abissal das forças em confronto e todos os oficiais foram expulsos. O pai de José passou anos a lutar pela reintegração, o que aconteceria depois do 25 de Abril. Enquanto esperava por isso, comandava os escuteiros de Tomar e orientava as crianças da cidade em provas de campo – desafios que mais não são do que primórdios da actividade que viria a vitimar José Januário Crisóstomo de Andrade: o geocaching, que consiste na procura de caixas escondidas em locais de difícil acesso com a ajuda de um aparelho de GPS (ver o outro texto).
No sábado de 31 de Julho, o professor aventureiro subiu a serra de automóvel, conduzido pela mulher, e embrenhou-se sozinho, em passada larga e sob sol escaldante, numa zona muito acidentada e de vegetação cerrada. Luísa aguardou no carro que o marido descobrisse cinco caixas sucessivas, mas, passadas várias horas sem que ele regressasse, deu o alarme. Um geocacher experiente verificou que o desaparecido tinha visitado apenas uma das caixas e, ao fim de dois dias de buscas realizadas pelos mais diversos especialistas, um cão das forças militares encontrou José Andrade sem vida, a meia centena de metros de onde saíra do automóvel.
Ninguém sabe concretamente o que lhe aconteceu. As testemunhas afirmam que a vegetação tinha indícios de passagem de javalis e que ele poderia ter sido projectado e batido com a cabeça em pedras. Ou teriam sido os joelhos a ceder? Ou uma indisposição súbita?
Segundo o psicólogo de desporto Sidónio Serpa, seu colega de curso, José Andrade “gostava de desafios e de testar o corpo, e porventura ultrapassou os seus limites”.