Shintaro Yokoshi. “Pensei que tinha caído o Sol”

Shintaro Yokoshi. “Pensei que tinha caído o Sol”


Há 70 anos, uma bomba atómica arrasou a cidade japonesa de Hiroxima. Shintaro Yokoshi era apenas uma criança mas não se esquece da gigante “bola de fogo”. “Ia morrendo. Podia ter acabado aí”.  


Mas não acabou e veio parar a Portugal, onde se tornou treinador de natação. Com um vasto currículo,  Shintaro Yokoshi é hoje uma figura acarinhada pelos seus alunos, que o apelidam de mestre.

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Ao entrar na residência do mestre Yokoshi a primeira imagem com que nos deparamos é a do Monte Fuji, estampado na parede, num quadro “pintado por um amigo”. É uma casa japonesa, com certeza. Shintaro Yokoshi, de 79 anos, tinha apenas 9 quando testemunhou, da janela da escola, a explosão da primeira bomba atómica.

Treze anos depois, já com uma brilhante carreira como atleta de natação, Shintaro veio para Portugal e tornou-se treinador da modalidade no Sport Club Algés e Dafundo e mais tarde no Sport Lisboa e Benfica. No clube da Luz o Mestre Yokoshi acompanharia a evolução daquele que é, até hoje, o atleta português com maior palmarés internacional em natação: o seu filho Alexandre.

Quais as memórias que guarda da sua infância ?
Lembro-me muito da natureza, do mar e da floresta na zona onde vivia. Mas a minha infância foi muito marcada pela guerra e pelas batalhas aéreas. Por vezes caíam aviões americanos e cheguei a ver um aviador de perto. Parecia uma formiga gigante, por causa dos óculos. 

Como era Hiroxima antes da explosão?
Eu vivia numa vila que ficava a cerca de 10 km de Hiroxima, mais ou menos a mesma distância entre Lisboa e Algés. Hiroxima tinha prédios altos e eu de vez em quando ia visitar o teatro, o cinema e a feira popular.

Onde estava no dia 6 de Agosto de 1945, às 8h15?
Era época de férias, mas não sei porquê nesse dia eu estava na escola primária. Estava sentado na sala de estudos, que era um pouco escura, e de repente entrou luz pela janela. Uma luz muito clara, luz azul. Corri à janela para ver o que tinha acontecido. Depois houve um grande estrondo e um grande vento e vi, atrás de um pequeno monte, uma bola de fogo. A cor era impossível de explicar: laranja, encarnado, preto. Como uma bola de vidro cheia de cores. E eu pensei: “Caiu o sol!”. Era impossível, eu sei, mas quando rebentou fez uma nuvem em forma de cogumelo e como a parte de baixo estava tapada com o monte e eu só via a parte de cima.

Teve noção de que era uma bomba?
Não sabia o que era, mas os meus pais pensaram que tinha caído uma bomba no vizinho. O som era tão forte que toda a gente pensou que a bomba tinha caído ao seu lado.

Sentiu medo?
Medo não senti porque, para um homem japonês, ter medo é algo vergonhoso. Mas corri. Havia uma baía e eu corri para a outra ponta, onde ficava a minha casa. Não olhei para nada, só corria para casa. Os pescadores, por causa do calor, atiravam-se para a água. Quando cheguei a casa olhei para a cidade e vi várias pessoas a arder e no meio uma coluna de fumo, muito alta, como se chegasse ao cimo do céu. Em baixo o fogo era encarnado. No meio uma mistura de preto e branco. Um redemoinho gigante.

A sua vila sofreu com o impacto?
A nossa vila estragou-se com o vento da bomba, mas não houve fogo nem nada. No dia que caiu a bomba, por volta das 14h, começaram a chegar pessoas queimadas à nossa vila. Todos pensávamos que era roupa queimada que estava a dependurar. Mas não, era a pele que se pendurava. E as mãos estavam estendidas à frente, caídas, como se fossem fantasmas.

Como foram os dias seguintes?
Dois dias depois fui procurar família e amigos e é curioso que três dias depois o comboio já andava. A família que estava no liceu, na cidade de Hiroxima, nunca mais os vi. Enquanto os procurava vi tantos, tantos cadáveres. E depois de dois dias e meio ainda havia sítios a arder em todo lado. Vi um cadáver que parecia o de um bebé e os meus pais disseram-me que era um homem adulto, cujo corpo tinha derretido com o calor até ficar do tamanho de um bebé. E vi um cavalo sem cabeça. Só o corpo e o estômago caído.

Os médicos da vila não tinham remédios. Só usavam tintura de iodo e davam água aos feridos antes de morrerem

Criaram-se hospitais de emergência?
Sim. Um antigo armazém ficou como hospital e recebia muitas pessoas queimadas a gemer e a pedir água. Era um inferno. A minha escola primária também se tornou num centro de emergência. Os médicos da vila não tinham remédios. Só usavam tintura de iodo e davam água aos feridos antes de morrerem.

Depois veio a radioactividade. 
Era um novo tipo de bomba e nós ainda não conhecíamos a sua influência. Só soubemos mais tarde os efeitos da radioactividade para a saúde. Oficialmente houve um número de mortos, mas muita gente morreu mais tarde.

Chegou a sofrer efeitos da radiação?
O que me aconteceu era estar sempre cansado. No primeiro dia de aulas, 1 de Setembro, não conseguia aguentar-me de pé. Alguns ficaram sem cabelo, outros com sangue a sair das gengivas. 

A comida na cidade ficou contaminada?
Sim, lembro-me de ver uma família a comer uma conserva toda inchada e deformada. A minha mãe disse que estava estragada, mas era um dilema: comes e podes morrer intoxicado; não comes e podes morrer de fome. Quando existem situações de sobrevivência as pessoas perdem o senso comum, tornam-se tão irracionais como o meu gato.

Em situações de sobrevivência as pessoas perdem o senso comum, tonram-se tão irracionais como o meu gato

Como é que Hiroxima se reergueu?
Depois da guerra os japoneses dedicaram-se à pátria, reconstruíram tudo pela pátria. Com força de vontade e com união. Por isso recuperámos rapidamente.

Os japoneses culpam os americanos?
É dividido. Uns odeiam os americanos, outros estão agradecidos pela ajuda prestada depois da guerra, e há quem compreenda que os humanos são iguais. Os japoneses pensavam que os americanos eram o diabo e vice-versa. Em geral, os japoneses crêem que as coisas passadas se devem esquecer. O objectivo é apenas um futuro sem guerra. 

Acredita que pode haver uma nova guerra nuclear? 
Seria o fim do mundo. O meu maior medo é a Coreia do Norte, um país comunista cujo governo parece uma dinastia, como a de Bourbon. Deveria haver um 25 de Abril neste país. Ao usar armas nucleares não são só os humanos que morrem: é o ambiente, as árvores, os animais, tudo morre.

Editado por José Cabirta Saraiva