Entrar no Café Central de Avanca é dar de caras com um balcão de jornais e revistas, uma tímida montra de bolos e uma parede orgulhosa da equipa de futebol da terra. Já passa do meio-dia, mas é preciso esperar pelo fim da hora de almoço para começar a ver Elisabete na azáfama de servir os cafés que ajudam a dar início à digestão. “Vivemos muito disto, um cafezinho, uma cervejinha e, de vez em quando, um bolinho”, conta a proprietária. “Tem dado para viver, mas a verdade é que quem tem um negócio destes vive numa prisão.”
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Sem possibilidade de ter funcionários a dar uma ajuda, é Elisabete quem está atrás do balcão das 6h30 até às oito da noite, contando com a ajuda do marido, que assume o comando à hora de jantar até à 1h da manhã. Só fecham portas ao domingo à tarde e, mesmo assim, a decisão não foi pacífica. “Já ouvi muitas bocas, sabe? Dizem que se fecho é porque não preciso do dinheiro”, confidencia Elisabete num encolher de ombros de resignação.
Como que a dar um ânimo extra, ouve–se da mesa ao lado: “Este pode não ser o café que faz mais dinheiro, mas é de certeza aquele que tem a dona mais simpática.” Avelino frequenta o estabelecimento desde que se lembra de ser gente e ajuda a colmatar a memória de Elisabete, que só está à frente do negócio há cinco anos.
O Café Central foi o primeiro em Avanca a ter televisão e Avelino, um desenhador projectista agora reformado, tira os olhos do jornal “Record” para lembrar o papel de porteiro que o dono de então assumia nas noites de campeonato do mundo. “Punha-se à porta e só deixava entrar para ver os jogos quem tivesse nove tostões para o café”, recorda, ao mesmo tempo que conta pelos dedos das duas mãos as vezes que ficou à porta. “Nem pela janela ele deixava espreitar, fechava tudo com cortinas.”
Apesar da roda-viva de proprietários que já passaram pelo estabelecimento, Avelino mantém a ida ao Central como um ritual. “O meu lugar é sempre este”, e finca as mãos na cadeira, “já ninguém se atreve a sentar–se aqui.” Apesar do tom de brincadeira, é um aviso que acaba por ser levado a sério.
São as manchetes desportivas a ditar o mote das conversas, mas nem só de futebol vive o dia-a-dia de quem aqui passa um par de horas. “O Vara foi dentro, o próximo é o Portas”, comenta David Borges, sentado na mesa em frente a Avelino, que responde sem demora: “Esteja calado, não sabe o que diz.” Para bem de todos, decide-se naquela hora voltar à conversa sobre bola que, apesar de não resultar em consenso, dá sempre azo a uma troca de palavras mais animada. “A sorte de vir o Casillas é trazer a Carbonero com ele”, brinca David, o que leva a uma gargalhada geral. “És sempre o mesmo”, desabafa Elisabete, que atrás do balcão vai servindo os cafés a quem chega, sem precisar sequer de perguntar o que vão querer tomar. Sabe até que para alguns a chávena do café serve apenas de disfarce a uma dose de aguardente, bebida num só trago.
Centro de tudo As portas de vidro que delimitam o estabelecimento servem de entrada do café, mas também como montra de tudo o que se passa na vila. Colocados sem ordem vão-se acumulando os papéis que avisam quem morreu, ao lado de anúncios de compra e venda de terrenos, casas para arrendar para férias no Algarve ou o calendário de jogos da Associação Atlética de Avanca.
O espaço ocupado actualmente pelo café já serviu de mercearia e drogaria mas, do antigamente, só exibe uma fotografia que ocupa quase a totalidade de uma das paredes e que mostra o edifício quando era rodeado por duas casas, em frente a uma estrada de terra batida onde ainda passavam carros de madeira puxados a cavalos. “É este Café Central que eu tenho na memória”, conta Aníbal Duarte, um homem da terra conhecido pela sua veia empreendedora mas que, antes de se aventurar a abrir cafés e restaurantes em redor, começou como empregado do Central.
Temos a sorte de os seus frágeis 84 anos não apagarem as memórias que lhe saem da boca sem esforço. Lembra-se de o patrão ter incendiado o espaço para receber o dinheiro do seguro e de o ver gastar o lucro nas mesas de jogo, “mas pagava certinho, disso não me posso queixar”. Aníbal também servia à mesa, mas era na cozinha que brilhava.
Aprendeu a arte com a mãe, também cozinheira, e garante que havia quem viesse de propósito para comer a sua cabidela ou a dobrada com feijão branco. À medida que Aníbal debita memórias, Elisabete vai-se aproximando da mesa e acaba sentada na cadeira ao lado com os olhos arregalados de satisfação de ver que o café que agora é seu tem mais história do que aquela que as paredes remodeladas contam. “Eu já nem olho para estas pessoas como meus clientes.
São os meus amigos, a minha família”, confidencia, não evitando que Aníbal lhe agarre na mão para ajudar a controlar a emoção. “Nunca tive problemas com nenhum cliente, foram sempre educados comigo”, conta, mas volta atrás na palavra para referir um que não achou particularmente simpático. “O Portas veio cá em campanha, pediu cafés para toda a comitiva e depois de alguma conversa diz ‘Está pago, não está?’.” Elisabete não se ficou por meias-medidas. “Devia ter perguntado ‘quanto é?’ e aí eu até podia oferecer. Assim, olha, lixou-se e pagou tudo.”