Não foi fácil levar a entrevista até ao fim. Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna e antigo chefe do SIS, continua a ter uma vida agitada. O telefone do gabinete, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, onde dá aulas, toca várias vezes. Numa das chamadas, levanta-se, tira o Código Penal da estante e dá explicações a um magistrado em apuros. Logo depois batem à porta: é um aluno a pedir ajuda. No meio da azáfama vai-se desenrolando a conversa, sobre segurança, polícias, política, a Operação Marquês e a maçonaria. Rui Pereira confessa-se inconformado com a decisão de António Guterres de não se candidatar às presidenciais e lamenta que os portugueses estejam “um bocadinho cansados” do sistema político. Conta como não quer voltar à vida política, diz que não acredita em cabalas na justiça e rejeita que os maçons tenham demasiada influência na sociedade: “Há uma visão mítica da maçonaria”, garante.
Continua à frente do Observatório de Segurança. Portugal é um país seguro?
Continua a ser um país seguro. Todos os países têm problemas de criminalidade e não é possível as sociedades erradicarem o fenómeno, que tem de ser mantido dentro de certas margens e precisa de ser prevenido e reprimido. Mas Portugal é um país relativamente seguro. Temos índices de criminalidade relativamente baixos e é razoavelmente seguro andar na rua sem ter o receio elevado de se ser vítima de um crime.
Contrariamente ao que alguns especialistas previam há uns anos, no advento da crise económica.
Pensava-se isso, que o crime cresceria, mas não é assim que a criminalidade evolui.
Os estudos não mostram essa relação?
Não, provam o contrário. Em sociedades com elevados níveis de consumo é que a criminalidade contra o património e a violenta aumentam. A consequência mais grave da crise é o aumento de outra criminalidade: a da violência e dos maus-tratos. O que nós notamos de preocupante na sociedade portuguesa é uma certa fragilização, desagregação, da estrutura social.
Não houve, de facto, grandes tumultos, mesmo nas grandes manifestações.
Tivemos alguns, mas depois houve uma certa estabilização. Em determinada altura estivemos perto de uma viragem social, notava-se que as pessoas estavam muito saturadas em relação às políticas de austeridade. Depois disso, entrou-se não digo numa fase de crescimento económico, mas numa fase de uma certa contenção, e as pessoas, neste momento, estão entre a resignação e a expectativa.
Resignámo-nos?
É uma mistura de resignação e de expectativa. Uma expectativa prudente, desconfiada. Creio que, em termos políticos, as pessoas hoje esperam para ver. Não estão dispostas a confiar em qualquer coisa que lhes digam.
O que é sintomático de uma certa desilusão.
Claro. Nós temos uma democracia e uma Constituição com 40 anos. Nunca, em Portugal, uma Constituição durou mais tempo, à excepção da ditadura, que teve 41 anos. Tivemos seis Constituições – três da monarquia e três da república – e, apesar de Portugal ser um país de brandos costumes, todas resultaram de golpes de Estado ou de revoluções, à excepção da Carta Constitucional de 1826. Se acreditarmos em estatísticas, estamos a atingir um ponto de uma certa fadiga constitucional. Mas não acho que seja imperiosa ou urgente uma revisão constitucional. Acho que o nosso sistema político é equilibrado, a separação de poderes está bem desenhada na Constituição, o sistema eleitoral também está adequado ao país.
De onde vem essa fadiga, então?
Resulta da prática político-partidária. Também não alinho com as teses de catástrofe que dizem que os políticos são todos corruptos e que tem de se fazer uma regeneração completa da sociedade e do regime, mas tem havido uma certa fadiga porque têm existido promessas não cumpridas, escândalos relacionados com corrupção… As pessoas estão um bocadinho cansadas do sistema político.
Fica surpreendido quando esses casos vêm a público?
É evidente que sempre que há indícios ou acusações relativas a pessoas que tiveram responsabilidades, há sempre um grau de surpresa, porque esperamos que quem desempenha responsabilidades públicas não seja indiciado pela prática de crimes. Não porque esteja acima da lei, mas porque confiamos nas pessoas que elegemos. Mas a verdade é que os fenómenos de corrupção não são fenómenos actuais. O crime de corrupção já estava previsto no direito romano. O crime de tráfico de influências é que é muito recente, foi incluído no Código Penal em 1995 para formar conjunto com o crime de corrupção. O tráfico de influências é um crime que, de certa forma, nos dá uma rede larga para combater aquilo a que, socialmente, chamamos “corrupção”.
Existe a percepção de que esses fenómenos estão muito disseminados na sociedade portuguesa.
E por isso é preciso um esforço para os erradicar, tanto quanto possível. Erradicar nunca é possível porque, repito, a corrupção já vem do direito romano e vai continuar a existir. Mas é necessário conter esses fenómenos, também com uma acção pedagógica. Não se pode deixar passar a percepção de que a corrupção é um fenómeno da democracia ou a ideia de que as ditaduras são imunes à corrupção.
Também há uma tendência crescente, nos últimos anos, para pensar que quem vai para a política o faz para se servir.
No que diz respeito à minha experiência, posso dizer que não é assim. Quando aceitei o convite, que na altura me surpreendeu, para dirigir o SIS, em 1997, fui ganhar menos do que ganhava antes. Quando saí do Tribunal Constitucional para ir para o governo, fui ganhar muito menos.
E a experiência das pessoas com quem contactou na vida política?
Em todas as organizações há pessoas que têm uma actividade altruísta, apaixonada até, e pessoas que têm uma actividade interesseira e que estão numa perspectiva de lucro e de tentar obter uma vantagem mais ou menos imediata. Isso acontece na política e fora dela.
Na política são uma parte significativa?
São uma parte, mas não acho que sejam a maioria. Posso dizer, com algum orgulho, que tenho uma experiência relativamente rica. Fui ministro da Administração Interna durante mais de quatro anos e, nessa pasta, percorri todo o país, todos os distritos. Nesses périplos, e ao contrário do que é voz corrente, encontrei muitos autarcas dedicados, empenhados e ao serviço da comunidade. Na maioria dos casos não tinham conversas comigo sobre preocupações pessoais.
Nunca lhe pediram uma cunha enquanto esteve no governo?
Não.
O cargo de ministro da Administração Interna tem a particularidade de exigir um trabalho difícil: conseguir conciliar as cúpulas das polícias, sobretudo da PSP e da GNR. Sentiu essa dificuldade?
É o tipo de trabalho que gosto de fazer. Há relações de emulação entre todas as polícias de todos os países do mundo, não é um problema português. Mas estou convencido de que a desconfiança e as relações negativas e de rivalidade entre serviços e forças de segurança só são superadas se houver coordenação e trabalho conjunto. Só assim as pessoas percebem que o êxito de um serviço ou força favorece todos.
Não ajudaria reforçar as competências de quem coordena as polícias?
O Ministério Público tem capacidade para, em algumas matérias que não sejam da competência reservada da Polícia Judiciária, dizer qual é o órgão de polícia criminal mais bem colocado para fazer a investigação. Mas aí também há algumas dificuldades. Apesar de o Ministério Público ter o domínio do inquérito e de ser indesejável que se transforme em polícia, por vezes está muito ausente. Na maioria dos casos, com as delegações genéricas, delega tudo nos órgãos de polícia criminal, chega ao fim e recebe o resultado para arquivar ou acusar.
Deveria acompanhar mais de perto?
Sim, porque a acusação do Ministério Público é essencial para ter êxito no julgamento. E um Ministério Público muito ausente do inquérito não conhece tão bem o processo para fazer uma acusação tão sustentada. Na maioria dos casos, os contactos do Ministério Público com os processos são completamente inexistentes. E sei que é muito complicado, porque os magistrados não são em número que permita o acompanhamento de todos os inquéritos.
Na óptica das polícias, alguns magistrados estão presentes demais.
É verdade, mas o que falha mais é um certo distanciamento. E se houvesse menos distanciamento, talvez houvesse maiores possibilidades de evitar conflitos de competências. Só se ganha confiança através da proximidade.
Ainda persiste a ideia de que precisamos de mais polícias?
Enquanto fui ministro achava que, em geral, havia um número de polícias aceitável, por relação com o número de habitantes. Sei que hoje os polícias se queixam de que há muitos a sair e poucos a entrar. O que tem de se garantir é o equilíbrio desses dois movimentos. Ainda hoje ouvi queixas, salvo erro, do sindicato do SEF…
O SEF é um caso claro desse desequilíbrio. Em mais de dez anos houve apenas um concurso para admitir 45 pessoas.
É isso. Não podemos deixar os serviços e forças de segurança desguarnecidos. Tem de haver um fluxo mais ou menos regular de admissões para compensar as saídas.
Disse-se que haveria a intenção deste governo de extinguir o SEF. Isso faria sentido?
É evidente que há vários modelos que podem corresponder às necessidades de segurança, mas o experimentalismo e a fúria de revisões orgânicas não dão bom resultado. Em matérias de segurança, devemos ser relativamente conservadores. Antipatizo com a ideia de extinguir ou fundir serviços e forças que já tenham experiência comprovada, provas dadas e utilidade manifesta. E não concordo com a ideia de pôr em causa o modelo em relação à PSP, à GNR, à PJ e ao SEF. Acho que se devem manter com as suas capacidades e valências.
Como se resolvem as redundâncias?
Devem ser evitadas na medida do possível. Uma das discussões recorrentes é se só deveria haver uma força de segurança. Imagine que estávamos a construir um país a partir do zero. Nesse caso, eu aconselharia a que houvesse só uma. Mas estamos a falar de uma história e de instituições centenárias. Apesar de poder haver algumas redundâncias, acho que o sistema dual, hoje – e não quer dizer que valha para sempre –, não deve ser posto em causa por uma reforma que produziria um grande ruído de fundo e uma grande desordem no sistema de segurança português.
Mas não podemos aceitar todas as redundâncias.
Não. Acho, por exemplo, que deve haver uma certa especialização das duas maiores forças. Se uma está mais virada para a segurança aeroportuária, a outra deve estar mais orientada para a segurança nas estradas. Não é preciso que façam exactamente o mesmo. Ainda assim, a fusão da PSP e da GNR traria mais problemas que soluções. Há é um número excessivo de órgãos de polícia criminal – mais de 20. Serão provavelmente demais, mas nem a PJ nem o SEF devem ser postos em causa. A PJ, porque é necessário um órgão que continue a responsabilizar-se pelos crimes mais sofisticados, mais organizados e mais graves. Os homicídios, o terrorismo, a criminalidade económica e financeira e a criminalidade informática são realidades em que é necessário apostar muito. Quanto ao SEF, podemos até ter a ilusão de que a abolição das fronteiras tornou dispensáveis, ou menos importantes, os serviços de fronteiras. Mas é uma grave ilusão. O facto de não haver fronteiras internas implica que a nossa costa atlântica seja hoje a fronteira de quase 30 Estados europeus. Isso dá-nos responsabilidades acrescidas. Além do mais, tem-se provado que o SEF tem tido uma actuação competente e reconhecida internacionalmente.
À excepção do escândalo dos vistos gold.
A questão dos vistos gold… temos de esperar pelo processo para ver o que acontece. Mas o papel do SEF, enquanto instituição, é nenhum. Quero tentar perceber, no fim, quem é que praticou ilícitos criminais, mas não estou nada convencido de que o SEF tenha tido implicação. E nada do que aconteceu põe em causa a honorabilidade do SEF ou a sua capacidade de actuação.
Miguel Macedo saiu na sequência desse escândalo e a ministra Anabela Rodrigues tem tido muitas dificuldades. Há um enormíssimo clima de tensão com as polícias.
O papel da ministra da Administração Interna é um papel difícil, devo dizer. Tenho estima e consideração por ela e intimamente desejo que lhe corra o melhor possível. Mas chegou em circunstâncias difíceis, nomeadamente ao entrar para um período inferior a um ano. Não a critico por ter aceitado mas, para alguém que não esteve antes no ministério, é entrar com o pressuposto de não fazer nada além de uma gestão corrente. E não vai conseguir fazer nada, é uma questão de ir gerindo o dia-a-dia. Mesmo quatro anos é um período relativamente curto. No meu caso, já tinha uma experiência vasta. Mas mesmo assim, é preciso uma pessoa inteirar-se das matérias, ver o que já foi feito, como se vai dar continuidade. E isso demora tempo. É extremamente negativo entrar e mudar tudo.
Voltará um dia à política?
Isso está fora de causa. É evidente que, se me pedirem que ajude a pensar uma reforma, um projecto, estou disponível, desde que seja compatível com os meus princípios e a minha maneira de ver o mundo e o país. Mas não sou nenhuma virgem ansiosa à espera de ser convidada para o que for.
Não é, portanto, presidenciável?
Não, neste momento não. E o meu candidato preferido disse que não…
O engenheiro António Guterres?
Até escrevi dois artigos já há bastante tempo a tentar intimá-lo a concorrer.
E agora, tem um plano B?
Estou à espera, como no póquer, a ver quem se apresenta. É evidente que já há candidaturas, como a do professor Sampaio da Nóvoa, que é forte e reúne muitos apoios. Ainda assim, é cedo para saber o que vai acontecer. Mas acho mesmo uma pena o engenheiro Guterres não se candidatar e custa-me conformar-me com isso. É engraçado que há um desfasamento sobre o que ele pensa sobre ele próprio e o que as pessoas pensam sobre ele.
Porquê?
O engenheiro Guterres acha que é um homem talhado para funções executivas e as pessoas, normalmente, acham que estaria mais talhado para funções presidenciais. Acha que é um homem mais de acção. Não sei se foi esse desfasamento que o levou a não querer ser candidato numa situação em que toda a gente prognosticava uma vitória. Mas, mais do que isso, talvez tenha sido um certo desencanto em relação à política nacional.
Acha isso?
Acho. Vou-lhe contar uma coisa: eu, quando era ministro, nunca tive férias. O mais que tive foi fins-de-semana. E numa altura em que me sentia mais cansado, fui a Itália dois dias com a família. Sou-lhe sincero: sou muito patriota, gosto muito do meu país, mas nunca me soube tão bem estar a quilómetros. E imagino que o engenheiro Guterres, em situações de maior saturação política, deve ter sentido esse efeito balsâmico do distanciamento. E o efeito deve-lhe ter sabido tão bem que não está interessado em voltar à vida política portuguesa.
Por falar em distanciamentos, já foi visitar José Sócrates?
Não, mas é uma coisa que poderei fazer. É uma obra de caridade visitar os reclusos. Mas, no fundo, quando se visita alguém que está na prisão ou é por se ser do ciclo íntimo e familiar ou por um gesto de solidariedade. É uma questão que estou a equacionar. Não vejo as visitas como o cumprimento de um dever.
Quer dizer que não sentiu ainda vontade de exprimir essa solidariedade?
Não é isso. Em primeiro lugar tenho uma vida, com as aulas, muito ocupada. Em segundo lugar, tem havido muitas visitas e, portanto, não creio que falte ao engenheiro Sócrates esse nível de solidariedade e de proximidade.
A defesa fala numa cabala política. E se no fim do processo se concluir que a detenção foi um erro?
O sistema de justiça não tem obrigação de condenar em todos os casos. Tem, sim, obrigação de decidir justamente os processos. Se se chegar ao fim e se concluir que não houve nenhum crime, o arguido é absolvido e o sistema de justiça funcionou. O sistema não serve só para condenar – isso seria um condicionamento terrível para o próprio sistema. Se há indícios da prática de um crime e se prova, em julgamento, que esses indícios não foram confirmados, o sistema não funciona mal. Seria grave se se dissesse que não há acusação porque nunca houve indícios. Mas não se pode considerar que o sistema de justiça funciona mal quando alguém é acusado e posteriormente absolvido.
Da experiência que tem, considera que é possível instrumentalizar a justiça para fins políticos?
Não creio, normalmente, em teorias de cabalas e manipulação político-partidária da justiça. Não acredito. É evidente que todos os juízes e magistrados têm as suas mundivisões. Devem procurar, sempre que julgam, ser objectivos, mas também têm as suas mundivisões que influem na forma como apreciam os fenómenos criminais.
Isso é uma coisa, outra coisa será manipular propositadamente.
Nunca me apercebi, e isso seria muito grave, que processos-crime fossem orientados num sentido político.
Nem para sentidos combinados na maçonaria?
Isso menos ainda. Sabe que eu acho que há uma visão um bocadinho mítica da maçonaria.
Porquê?
A maçonaria tem muito menos influência na sociedade do que as pessoas pensam. E as sessões maçónicas só são fechadas ao público por causa do ritual. Não é por mais nada. As sessões produziriam nos chamados “profanos” uma mistura de sentimentos: curiosidade, porque as pessoas gostam sempre de assistir a rituais, mas também aborrecimento, porque nas sessões, de acordo com os estatutos maçónicos, não se pode discutir temas políticos ou religiosos. Claro que em qualquer associação é possível que as pessoas entrem para obter vantagens. Até no casamento, que é contrato tão digno! Uma pessoa pode querer casar com outra só para ficar melhor na vida.
Então fala-se de quê?
A maçonaria é uma associação com um objectivo filosófico. Os temas maçónicos são de natureza filosófica, mas não envolvem a luta político-partidária nem escolhas religiosas. Mas também lhe digo que acho que a maçonaria tem de se adaptar aos tempos modernos.
Em que sentido?
Acho, por exemplo, que o segredo maçónico deve ser confinado apenas àquilo que realmente vale a pena manter em sigilo. Apesar de hoje na internet se ver tudo sobre a maçonaria, os rituais são reservados, é da sua natureza, e isso não tem nada de mal. Sobre o sigilo… eu acho que a decisão de revelar que se é maçon é pessoal. Ninguém pode ser obrigado a declarar se é católico ou muçulmano e acho que isso também é válido para a maçonaria, porque se baseia num nível profundo de consciência, de crenças, também diz respeito à liberdade de consciência. E também ninguém deve ser obrigado a dizer se outro alguém é da maçonaria, por ser uma decisão pessoal. Fora isso, não há nenhum véu de segredo ou de sigilo que cubra a maçonaria.
Nesse caso, está em que grau?
Essa é boa! (risos) Tem-se dito algumas vezes que eu sou muito influente, mas não é verdade.
Então qual é o grau?
Em relação aos graus superiores e inferiores, posso dizer que sou um sócio indiferenciado da organização. E não tenho aspiração a grandes graus. Com Salomé Fernandes