Com os tímpanos feridos pelas sirenes dos batedores da polícia, anunciando mais uma comitiva de um qualquer chefe de Estado e de governo que vem participar na enésima e decisiva cimeira europeia, não tenho, felizmente, de obedecer aos ditames do ofício de correspondente televisivo e acreditar que alguma coisa de decisivo se esteja a passar em Bruxelas, cujos habitantes fugiram já para as praias do sul da Europa.
Há a clara sensação de que não há uma história capaz de ser contada, uma história que possa ser ouvida, uma história que possa soar a verosímil, ou convidar ao devaneio e ao prazer do sonho, uma história que inclua mudança e continuidade, que permita identificar personagens secundários e protagonistas, bons e maus, heróis e traidores. Se a União Europeia do tempo presente fosse uma produção televisiva não passaria do episódio-piloto, tal a falta de interesse da história tal como é apresentada aos espectadores. E se os cidadãos europeus deixam de se interessar pela União Europeia não é avisado guardar memória na “box” da sua televisão para novos episódios, talvez a produção seja cancelada mais cedo do que se pensa.
Sobra a literatura, aquela que já nos fez conhecer outros episódios ditos revolucionários à época, outros processos de conquista, de “civilização”, de construção de um império. Por estes dias veio-me à memória o longo diálogo do príncipe de Salina com o emissário piemontês da nova ordem constituída, Aimone di Chevalley e que lhe vinha oferecer um lugar no Senado. Lido o texto em italiano, conseguimos ouvir a “r moscia”, o arrastar dos erres da pronúncia francesa, um dos sinais característicos da burocracia piemontesa mandada em tarefa civilizadora para os confins de um país a inventar.
“Tenha paciência, Chevalley, em seguida me explicarei; nós Sicilianos temos estado habituados por uma longuíssima hegemonia de governantes que não eram da nossa religião, que não falavam a nossa língua, a ser coca bichinhos. Se não o tivéssemos feito não teríamos conseguido fugir aos cobradores de impostos bizantinos, aos emires berberes, aos vice-reis espanhóis. Agora a dobra está feita, somos feitos assim. Disse “adesão” e não “participação”.
Nestes seis últimos meses, desde que o vosso Garibaldi pôs o pé em Marsala, demasiadas coisas foram feitas sem nos consultarem porque agora se pode pedir a um membro da velha classe dirigente para as desenvolver e as concluir; agora não quero discutir se o que se fez foi mau ou bom; a meu ver muito foi mau; mas quero dizer-lhe já aquilo que compreenderá por si quando tiver estado um ano entre nós. Na Sicília não importa fazer mal ou fazer bem: o pecado que nós sicilianos jamais perdoamos é o de simplesmente “fazer”.
Somos velhos Chevalley, velhíssimos. Há pelo menos vinte e cinco séculos que carregamos às costas o peso de magníficas e heterogéneas civilizações, todas vindas do exterior já completas e aperfeiçoadas, nenhuma feita por nós germinar, nenhuma que tenhamos afinado; nós somos tão brancos como você Chevalley, e tanto quanto a rainha de Inglaterra; e no entanto desde há dois mil e quinhentos anos somos uma colónia. Não o digo para me lamentar: é em grande parte culpa nossa; mas estamos à mesma exaustos e vazios.”
A tradução e as suas insuficiências são minhas, a partir da edição da Feltrinelli baseada no manuscrito de 1957. Os leitores e Lampedusa que me perdoem.
Escreve à sexta-feira