É aquilo a que se chama uma figura. E um sobrevivente. As bicicletas que constrói podiam ser uma metáfora da sua vida: são feitas a partir de pedaços de tudo, coisas deixadas aqui e ali, abandonadas. Depois, todas juntas, não só fazem sentido como se transformam em peças únicas e diferentes, tão loucas quanto inesperadas. As binas. E o Luís.
Era ainda miúdo quando o pai apareceu a boiar na praia de Cruz Quebrada, “para lhe roubarem dez contos”. Ele era o mais novo de oito irmãos que na altura tiveram de ser todos separados, porque oito é um número demasiado grande para uma mãe diabética e sozinha conseguir sustentar. Luís foi para Viseu, para casa de um tio, torneiro mecânico de profissão, que foi quem lhe ensinou tudo o que sabe. “Estive lá dos 11 aos 21 e vim embora quando as coisas começaram a ficar mal de dinheiro.”
Hoje, no Murganhal, onde vive, ou em Caxias, onde todos sabem quem é, é conhecido sobretudo pelas bicicletas com que anda acima e abaixo.
Esta, a da fotografia, é feita com um estendal de roupa, com uma tábua de passar a ferro, com tubos de água. Mas garante que podem ser feitas com quase tudo. Tem até uma em que o volante é feito com uma cadeira e outra em que as rodas são pneus de motos ou de automóveis. O limite é a imaginação. E um bom soldador – é este o principal problema de Luís, que não sabe soldar com precisão, e o amigo a quem recorre nem sempre está disponível para o ajudar.
Diz que gosta “de ser diferente. É tudo igual, tudo igual, as coisas deixam de ter piada, não é?”. Pela amostra junta, somos obrigados a concordar.
O jeito para a mecânica ficou-lhe do treino. O gosto para as biclas nasceu com ele, e os materiais cata--os aqui e ali. Uma das actividades do Luís é ajudar em mudanças e muitas vezes fica com aquilo de que os proprietários já não vão precisar. Mais do que isso, ajuda “a despejar casas” e fica com as coisas. Não é só ele que faz isto, é ele enquanto voluntário na Solfraterno – Associação de Solidariedade Social de Oeiras.
Nem toda a sucata que junta vai para construir bicicletas. Com o ferro-velho que vende, Luís constrói outros sonhos, como pagar uns óculos ao sobrinho, filho de uma das irmãs. “Somos assim, ajudamo-nos uns aos outros”, diz, cheio de orgulho. Entre os irmãos (um morreu), há um pouco de tudo, de jardineiros a taxistas, de mecânicos da TAP aos que fazem carreira no cinema. E também uma cozinheira. “A única que tem um curso superior, vende massa e pão lá no norte”, conta.
O brilho dos olhos de Luís contrasta com as dificuldades por que adivinhamos que passou. Talvez por isso tenha escolhido para desporto o parkour, um exercício cujo objectivo é mover-se de um ponto a outro o mais rápida e eficientemente possível, usando o corpo humano. Esta actividade foi criada para ajudar a superar obstáculos de qualquer natureza, em qualquer ambiente – Luís tentou várias vezes subir a Ponte 25 de Abril, mas tinha esquemas montados para nunca ser apanhado pela polícia.
Agora, o construtor de bicicletas deixou-se disso e faz o que pode para ajudar a família. “A menina não nota nada em mim?”, pergunta. Mas não espera pela resposta. “A olhar assim não nota, mas eu apanhei muita pancada na barriga da minha mãe.” A menina sou eu, mais velha do que ele, que só tem 32, e a revelação é feita para justificar o facto de não ter uma empresa sua. “Recebo uma pensão vitalícia de 237 euros por mês.” A mãe do Luís, com quem ele vive, tem quase 60 anos e não tem direito a reforma. Ao que parece, recebe 11,66 euros mensais depois de muitas andanças para lá e para cá com uma assistente da Segurança Social. O filho, claro, indignou-se. “Foi o que eu disse à senhora: a minha mãe teve de pagar 100 euros em papéis para agora receber 11,60 euros?!”
Por isso, Luís faz de tudo, sobretudo mecânica, de que sabe e percebe. Arranja carros, motos e bicicletas e, sobretudo os automóveis, a preços muito simpáticos. Mas já fez muito mais, desde produzir vinho e jeropiga até matar galinhas e lavar estores com escovas de dentes. Às vezes, as senhoras com mais idade pedem-lhe ajuda com as compras do supermercado e compram também os avios para ele. Talvez chegue o dia em que o Luís construa uma bicicleta-carrinho-de-mão.
Ideias não lhe faltam e enquanto não chegam encomendas que justifiquem um negócio, talvez alguém se lembre de propor uma exposição de bicicletas que, por onde passam, obrigam os transeuntes a voltar a cabeça.