Nuno Morais Sarmento.“Marcelo viverá com um trauma se não se candidatar à Presidência da República”

Nuno Morais Sarmento.“Marcelo viverá com um trauma se não se candidatar à Presidência da República”


O ex-ministro admite que uma maioria de coligação à esquerda seria um desastre para o país, mas teria vantagens.


Leia aqui a primeira parte da entrevista.

Acredita que nesta altura as pessoas já têm a sua decisão de voto tomada?
Muitas pessoas não têm ainda a sua decisão de voto tomada, embora ache que até ao mês de Agosto a maioria dos portugueses tenderá a tê-la. Mas há uma probabilidade grande de se viverem daqui até Outubro circunstâncias que vão ditar porventura a alteração de voto. A opção que o país faria hoje e que fará amanhã, com uma Grécia fora da zona euro, com juros a 10 por cento, com uma crise latente ou instalada, uma interrogação séria sobre a continuação da União Europeia, é diferente. Vejo como possível o agravamento da situação na Ucrânia e da relação com a Rússia, o agravamento da situação em algumas zonas do Médio Oriente e de perceber se a Síria é uma segunda Líbia. São muitas variáveis.

Quais são as condições sine qua non para o país avançar?

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É preciso fazer zoom out, temos de nos distanciar. Há bloqueios, além das contas públicas, das reformas estruturais e de uma estratégia para o país. Mas enquanto não acontecerem estes três elementos, o país não arranca. Estamos longe de viver isto. Se fizermos ainda mais zoom out, descobrimos que, para lá disto, temos um problema de sistema político.

Que problema?
O que temos é um problema de hardware, da Constituição, do modelo eleitoral, não é do software, que são os partidos. Isto é para mim claro, e o que me ultrapassa é porque não o enfrentamos todos. Andamos a discutir programas e partidos e presidentes e primeiros-ministros e governos – isto é tudo software –, e não discutimos que estamos a fazê-lo correr num computador – um hardware –, que é de 1989, na melhor das hipóteses, considerando que nesse ano se fez alguma revisão constitucional relativamente ao modelo do sistema político. Em 89 não havia internet, havia RTP mas não havia televisão privada, não havia telemóveis. Tudo mudou, mas nós achamos que o nosso sistema político não precisa de mudar e ainda discutimos as conquistas de Abril ou não sei bem o quê que o meu filho me vem perguntar: Abril?! Gastamos as energias do país a discutir se é melhor o Windows 98 ou o XP quando, na realidade, é relativamente indiferente, porque estamos a fazê-los correr num computador de 89, vai dar sempre bug. 

No início da nossa conversa falou num tempo paradigmático…
Estamos num tempo de mudança, a passar de um tempo de instituições para um tempo de pessoas. Isto é resultado, pela primeira vez na história da humanidade, de todos os homens estarem em contacto simultâneo – não por estratégia política. Estamos a experimentar modelos de relacionamento e de organização que não são piramidais, não são de comando e controlo vertical, são transversais, em rede, e dos quais resultará uma soma de pontos individuais. Estas circunstâncias, combinadas com aquilo a que, de uma maneira indigente, vínhamos chamando divórcio entre a política e os cidadãos, têm por trás uma coisa mais séria. 

Quer explicar?
Arturo Pérez-Reverte dizia numa entrevista que um dos maiores desencontros do homem na sociedade moderna é, primeiro, o facto de sermos animais sensoriais, apesar de vivermos muito pouco os sentidos – e isso vê-se, porque trabalhamos 11 meses que nem uns cães e depois vamos de férias com o dinheiro por que nos andámos a matar durante o resto do ano, e quando voltamos falamos nas cores, nos cheiros, nos sons, nas paisagens – uma espécie de farra dos sentidos, a confissão dessa necessidade. Segundo desequilíbrio: na natureza há animais individuais e animais gregários. O ser humano é gregário e, de todos, o único com a capacidade de ser auto-suficiente, autónomo se sozinho, e o único que em comunidade precisa de manter a identidade. Eu não estou a alucinar, já vou onde quero chegar.

Às pessoas, que estão a substituir as instituições…
As pessoas perderam a sua identidade nas sociedades modernas. É o artigo do Pacheco Pereira sobre o casal da outra margem, que é a história da colaboradora aqui de casa. Mãe de duas crianças, vive na Quinta do Conde, levanta-se às seis da manhã para pôr a tropa em marcha e chegar cá às nove, nove e meia. Sai daqui às cinco da tarde, demora duas horas a chegar lá, entre as 19 e as oito e meia faz o mesmo que fez cá em casa o dia todo porque não tem ninguém que o faça por ela, depois as crianças têm de comer, deitar-se, etc., e ela talvez tenha entre as dez e as dez e meia para existir, que se traduz em ser livre e poder escolher. Isto é a vida de nós todos: a dela na Quinta do Conde; a minha aqui, no escritório, na política, em Moçambique.

As pessoas não sentem que contam…
Se olharmos para um grande partido como existe hoje em Portugal e pensarmos no contributo de um militante de base que, na sua secção, dá a opinião, onde é que ele consegue viver a afirmação da sua individualidade, da sua identidade? É porque participa num cafarnaum de base qualquer com mais três ou quatro tão pouco esclarecidos quanto ele, dos quais um vai para o andar de cima, onde se vê um bocadinho melhor, e de lá de cima sai uma opinião que só por milagre coincide com aquela que era a sua opinião sobre uma matéria específica?! É esta perda de identidade, de possibilidade de afirmação que é a negação da razão pela qual nós entrámos no partido. E o mais curioso é que é a democracia, a afirmação da liberdade e do direito de participação e de escolha política que, com o tempo, está a matar este sistema partidário, um simulacro. A sensação que eu podia ter em 1975, porque participei, existi, já não existe no sistema político actual. O mundo em que temos esta alternativa, a rede, devolve – esse é o perigo e trará outros desequilíbrios – a existência individual às pessoas. É dizer precisamente aquilo que eu penso, como eu queria que fosse dito. Permite-me voltar a existir. Isto é uma necessidade estruturante do ser humano. 

Voltemos ao futuro difícil que acredita que Paulo Portas terá. Na coligação PSD-CDS está escrito que o CDS não poderá aliar-se ao PS ou a outro partido?
Não. Essas coisas nunca se dizem, seria a mesma coisa que admitir que não se vão atingir os objectivos a que se propôs. 

Porque antevê dificuldades para Portas?
Penso nos anos que Paulo Portas leva no CDS enquanto partido à direita do sistema político que é, nessa medida, guetizante. Paulo Portas viverá para a vida com o remorso de não ter sido líder do PSD – na cabeça dele – por, porventura, erro próprio, porque acha que se não tivesse saído seria líder. Viverá com esse trauma, não há nada a fazer. É um trauma parecido com o que Marcelo Rebelo de Sousa viverá se não se candidatar à Presidência da República. Se este governo continuar, Portas continuará uma relação que sabemos difícil, não é uma coligação de felicidade. Se não continuar, como é que é? Aquilo já não dá muito mais. O pano, qualquer dia, de tanta lavagem rasga.

E se ganhar o PS?
Vamos excluir a hipótese de maioria absoluta, que resolveria tudo. Se ganhar o Partido Socialista, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, o espaço de crescimento no sentido do apoio parlamentar ou do governo para uma maioria é à esquerda. E para saúde do sistema deve ser assim. Temos de abrir o sistema, que não pode estar viciado. E eu sou PSD de direita, mas digo isto porque temos de ver para lá do nosso umbigo, da ponta do dedo mindinho do pé. Não é o que eu gosto e quero para o meu país, nem o que vou escolher no dia do voto, mas tenho de ser lúcido para perceber que António Costa é talvez o socialista português com melhores condições de abrir à esquerda. Basta ver Lisboa. Sem drama nenhum, os comunistas não andaram a comer crianças e António Costa teve uma vereação, um executivo com gente francamente à esquerda do Partido Socialista, às vezes não com o apoio formal das respectivas forças. Essa é a sua mais-valia política. Admito que o resultado de termos, pela primeira vez na história da democracia portuguesa pós-25 de Abril, um governo com apoio parlamentar maioritário de esquerda pode ser um desastre para o país, mas isso são os portugueses que decidem. Agora, teria vantagens políticas.

Quais?
Primeiro, acabar com o complexo do 25 de Abril, que se traduz no facto de o partido mais à direita em Portugal ser o CDS – o que dá vontade de rir se compararmos com a realidade política do mundo – e o sistema ainda estar desequilibrado à esquerda – temos, por outro lado, um sistema em que todas as manifestações, movimentos, partidos, o que seja, as vozes que protestam e dizem que não se enquadram, estão à esquerda. Tem estas duas patologias do sistema político português. Ter um governo de coligação à esquerda é bom para reequilibrar politicamente o país, vai institucionalizar alguns desses movimentos e reorganizar o espaço à esquerda e à direita. A crise, que nos vai parecer o fim dos tempos, cinco anos depois vai ter sido importante no reequilíbrio do sistema.

O que espera que aconteça, de facto, em Outubro?
Em Outubro pode acontecer tudo. E o que me preocupa é a continuação da ingovernabilidade. Não consegue pôr um país de pé e a andar para a frente quando tem as descontinuidades que tem. E isso tem a ver com, por um lado, um conjunto de matérias relativamente às quais tinha de haver um acordo de regime; sou absoluta e radicalmente contrário a um governo de bloco central, mas sou furiosamente adepto de um acordo de regime. Que seria sobre cinco ou seis matérias que os partidos se entenderiam de maneira a garantir a cada um de nós, desgraçados, que temos de organizar a vida das famílias e das empresas, que durante os próximos anos não vamos andar aos ziguezagues para enjoar a cada esquina. E nós sabemos qual é essa direcção com seis, oito, dez anos. Isto tem a ver com fiscalidade, segurança social, organização do território, as áreas tradicionais.

Isso é uma parte. E o resto?
Por outro lado, esta ideia de que o objectivo se cumpre pondo as contas em ordem não chega. Porque não adianta pôr o carro na oficina, fazer a revisão, se depois o deixo parado. Preciso de futuro na minha vida e não vejo futuro na narrativa da coligação. Quando tivermos uma estratégia, não é um programa, são duas ou três escolhas do país que se assumem e que os governos podem pintar a manta, mas nesta matéria não mexem. E isto é metade da razão da nossa incapacidade de avançar. O pior é que nem sequer existe consciência da necessidade da estratégia. Uns acham que se pusermos o carro em ordem, isto fica bom – é a coligação –; outros acham que se fizerem de errata do programa do governo, está tudo bem – é o PS. Este é o meu sufoco.

Se o PSD perder as eleições, é candidato a líder do partido?
Responder a isso é estragar a nossa conversa. Não tenho nenhum impedimento. Agora, honestamente, a minha realização pessoal, profissional não passa obrigatoriamente por aí. Já houve tempos em que eu achei que passava.

Estou a olhar para a fotografia de Durão Barroso e a pensar de quanto tempo mais acredita que os portugueses vão precisar para se conciliarem com o facto de ter trocado Portugal pela Comissão Europeia?
Isto, em Portugal, muda em 24 horas. Já começam a fazer a digestão da importância que teve para Portugal ele ser presidente da Comissão Europeia quando Portugal entrou em resgate. Mas, mais importante, tenho para mim – estou a falar do país e de mim próprio – que somos politicamente ciganos. Os ciganos têm aquela tradição de quando alguém está doente vão todos para a porta do hospital e são muito histriónicos na manifestação da sua dor e do seu pesar. Nós somos politicamente assim. 

Quem seria o seu candidato a Presidente da República?
Durão Barroso. Mas não vai ser candidato a coisa nenhuma. Por isso, dentro dos possíveis, quando soubermos os nomes todos, eu respondo. Temos os nossos Tinos de Rãs, mas são epifenómenos, faz parte da coreografia, não mais do que isso.

Como é possível que se aprovem leis que nem o próprio legislador sabe o que querem dizer?
Tem a ver, em parte, com o tal anacronismo do hardware. Em parte, vem também de nós sermos um país que não é de tradição anglo-saxónica; somos de tradição francesa, alemã, de modelos que são dispositivos, em que a ideia é a desmultiplicação das leis em regulamentos. É um modelo napoleónico. Temos esse vício num país onde a penúria é muita, a persistência é pouca, a pensadura é só às vezes, a descontinuidade é gritante, a dificuldade de decidir e a capacidade de fazer andar é muito relativa. Acabamos no tique de tentar resolver a realidade por decreto.

Os juízes são uma classe privilegiada?
Não mais que os militares. São, mas o exercício das funções que desempenham justifica alguma diferenciação. Devemos garantir, aqui e em qualquer parte do mundo, que eles são diferentes porque devem ser independentes, autónomos, isolados das influências que podem interferir com a objectiva e saudável aplicação da justiça. Dizer isto já é diferenciá-los.

Os acontecimentos mostram sinais preocupantes?
Sim, no sentido em que cada vez mais os juízes estão a fazer justicialismo e não a julgar. E isto vem de nós termos no Ministério Público um conjunto de magistrados, sobretudo os mais novos, que muitas vezes não têm a capacidade ou o treino de fazer o papel de acusação, de defensor público ou de acusador. E não é uma nem duas vezes que eu vejo os juízes a fazer aquilo que devia ser o Ministério Público a fazer, ou seja, a interrogar. Não é esse o seu papel e, no limite, resulta na diminuição das garantias de defesa de qualquer cidadão.

Existe para si alguma questão ética ou moral em defender um interesse privado contra o interesse público?
Não. É até uma maneira de ganhar o respeito do adversário e o Estado português também não tem sido o garante da sobrevivência do escritório de advogados que represento.​