Paula Hawkins. “Todos temos o impulso de imaginar o que se passa na vida dos outros ”

Paula Hawkins. “Todos temos o impulso de imaginar o que se passa na vida dos outros ”


Mais de dois milhões de livros vendidos em três meses fazem de “A Rapariga no Comboio” um fenómeno. 


“A Rapariga no Comboio” é o best-seller do momento, somando lugares cimeiros nos tops de vendas de livros. Portugal não é excepção e a obra de Paula Hawkins, antiga jornalista que se estreia na ficção em nome próprio, parece destinada a alcançar o mesmo sucesso que tem obtido lá fora. Em entrevista, a escritora desvenda algumas das razões que poderão estar por trás do êxito deste thriller, comparado a “EmParte Incerta” (“Gone Girl” no original), outro best-seller mundial e, tal como ele, já a caminho de ser adaptado ao cinema. 

“A Rapariga no Comboio” tem sido um êxito mundial e muito mais rápido que o habitual. A que se deve este sucesso?
É difícil saber a razão. Há algumas coisas com as quais muita gente se pode identificar, as experiências quotidianas. Todos temos o impulso voyeurístico de imaginar o que se passa na vida dos outros. A personagem Rachel, por exemplo: nem toda a gente gosta dela, mas acham-na marcante e interessante e é uma personagem central muito invulgar para um romance deste tipo. Penso que parte do sucesso se deverá a isso. E, claro, o suspense, a necessidade de ter de se virar a página para saber o que vai acontecer a seguir. É uma das coisas que costumam agradar aos leitores e de que falam em relação a este livro. Os meus editores também têm feito um bom trabalho. 

Fala na personagem Rachel, que é depressiva, alcoólica e frágil. Porque quis que a protagonista do livro tivesse estas características?
Pensei essa personagem durante bastante tempo e não apenas no contexto deste livro. Queria escrever sobre uma pessoa ou uma mulher, neste caso, que tem problemas de memória como resultado do consumo de álcool porque isso, de certa forma, interfere com o sentido de culpa e de responsabilidade, uma vez que a pessoa não se lembra do que fez. Os outros podem dizer que essa pessoa fez alguma coisa mas, se ela não se lembra, isso separa-a desse sentimento directo de responsabilidade. Achei que era interessante explorar essa ideia. Por isso, parti daí e construí o resto da personagem à volta disso e, obviamente, o alcoolismo tem impacto em muitas coisas da sua vida, não apenas na memória. Tornou-se aquilo que a define. 

E o livro também parte dessa personagem ou a história surgiu primeiro?
Houve duas coisas que estiveram na origem da história: a ideia da personagem de Rachel e a ideia de escrever uma história em torno de algo que alguém testemunha a partir de um comboio, uma imagem de relance em que não se tem a certeza absoluta do que se viu ou que se interpreta de uma determinada maneira. Por isso, o livro vem em parte da intriga e em parte da personagem. Pensei nessas duas dimensões durante algum tempo e, quando as juntei, o livro começou a ganhar forma. 

O livro também parece sublinhar o facto de nunca conhecermos totalmente o outro e isso influenciar a forma como olhamos para nós próprios…
Neste livro, todos são pouco confiáveis, têm muitos segredos. Não imagino que a maioria de nós seja assim, mas há sempre uma zona inacessível. Por muito que se ache que se conhece realmente alguém, não se pode ter totalmente a certeza. Se se descobre alguma coisa do passado de uma pessoa de que não se tinha a mais remota ideia, isso põe-nos a pensar. E eu resolvi explorar isso, ainda que levando--o ao extremo. Penso que é algo com que provavelmente todos nós, uma vez ou outra, nos debatemos e nos preocupa: o quão bem conhecemos os nossos vizinhos, os nossos amigos, etc. 

“A Rapariga no Comboio” acaba também por abordar a condição da mulher e das pressões em relação à maternidade. É por isso que a história é escrita na visão de três mulheres?
Bom, essa questão é uma parte disso. Quis escrever sobre aquela fase da vida em que a questão da maternidade começa a ser apontada de todos os lados. E interessa-me a forma como a maternidade é encarada como uma coisa que define a pessoa, neste caso, a mulher, e como as escolhas que se fazem sobre a maternidade são vistas como um reflexo de carácter, e toda a gente sente que tem o direito de comentar sobre quando e se alguém decide ser mãe. É uma coisa que tem unicamente a ver com as mulheres; os homens não são julgados da mesma maneira no que toca à paternidade, não é tão distintivo. Por isso, acho que é uma pressão que todas as mulheres sentem e que, numa certa fase das suas vidas, as consome. 

Alguns escritores usam o suspense e o género policial para abordarem temas ou problemáticas sociais. É o seu caso? 
De certa forma, sim, não quero apenas escrever uma história de homicídio. Para lhe poder dar contexto e explorar as personagens, acabo por olhar para as questões sociais. 

O comboio é uma espécie de personagem omnipresente em todo o livro. Porque escolheu este meio de transporte? Costuma usá-lo também?
Se tiver a opção de escolher entre um comboio e um avião, escolho sempre o comboio. Se for possível chegar a algum sítio de comboio, prefiro sempre usá-lo porque é minha forma preferida de viajar. Os comboios têm algo de romântico e interessante.

Neste caso são viagens diárias, casa-trabalho-casa?
Sim, e isso é uma coisa comum a muita gente e representa uma grande parte da sua vida. Muitas vezes passa-se, por dia, uma ou duas horas no comboio. Cria-se uma proximidade com pessoas que nos são estranhas. São estranhos que passam a ser-nos familiares porque os vemos sempre, portanto, cria-se uma sensação estranha que é a de não se conhecer essas pessoas mas sentir que se conhece. 

Algumas críticas têm feito comparações entre o seu livro e o de Gillian Flynn, “Em Parte Incerta”. Acha que isso também terá contribuído para trazer leitores para o seu livro?
Sim, provavelmente. Houve pessoas que chamaram ao meu livro “o próximo ‘Em Parte Incerta’”, mas também houve muitos outros a serem referidos assim. Todos são “o próximo ‘Em Parte Incerta’” [risos]. Fico muito lisonjeada porque gosto do livro, da personagem, e acredito que, de certa forma, essa referência me tenha ajudado. Mas também pode acabar por funcionar ao contrário, porque os leitores percebem que o meu é muito diferente.

Tal como “Em Parte Incerta”, o seu livro vai ser adaptado ao cinema e os direitos já foram adquiridos pela Dreamworks…
Exactamente.

Que actores gostaria que interpretassem as suas personagens?
Penso que escolheram a Emily Blunt para o papel da Rachel, acho que é uma actriz fabulosa. As outras personagens não sei mas, de qualquer forma, é não só uma escolha que me ultrapassa como estou sempre a mudar de ideias sobre que actor ou actriz as devia fazer. 

Tem sido difícil para si lidar com todo este sucesso?
Têm sido meses muito atarefados e, obviamente, não estava à espera disto. A maior parte das vezes tem sido divertido e entusiasmante, mas agora quero voltar a estar concentrada na escrita, porque não quero deixar um grande espaço entre este livro e o próximo. Penso que isso aumentaria a pressão e me sentiria mais ansiosa. Por isso, nesta fase estou bastante decidida a ficar mais em casa, vamos ver como corre [risos]. 

Foi jornalista mais de uma década. Quando decidiu dedicar-se à ficção?
Estava numa situação um pouco ambígua porque já escrevia livros com o pseudónimo Amy Silver. O primeiro foi encomendado, por volta de 2008. Na altura trabalhava como jornalista freelancer e pediram-me para escrever o livro. E como sempre tive o desejo de escrever um romance, resolvi aceitar e tentar para ver como corria. Além disso, acho que também já estava cansada do jornalismo. Não era uma boa altura para exercer a profissão; com os mercados a caírem e todas as dificuldades, não havia dinheiro para freelancers. Fiquei contente por mudar, mas só agora é que estou a conseguir ganhar algum dinheiro.

Nasceu e cresceu no Zimbabué. Foi difícil adaptar-se a Londres?
Já tinha estado em Londres, de férias, mas obviamente é um modo de vida muito, muito diferente. Tinha 17 anos quando cheguei a Londres, não conhecia ninguém, ia para uma escola nova e sentia-me muito sozinha e triste, no primeiro ano. Levei algum tempo a habituar-me à vida londrina. E, apesar de ser uma situação muito diferente da de Rachel, acho que um pouco dessa solidão e sensação de estar à margem acabou por entrar nessa personagem. Tal como aquela inquietação de Megan, de constante vontade de ir para outro sítio, como se a vida passasse a ser melhor mudando de lugar ou conhecendo outras pessoas. Houve alturas em que também senti isso.

 O seu próximo livro será lançado em Portugal no ano que vem. O que pode já revelar-nos?
É sobre a relação conturbada entre irmãs, sobre o início das suas vidas e a forma como as suas experiências as afectaram mais tarde. Duas irmãs que durante muito tempo não se falaram e se tornaram estranhas uma para a outra. Volto a trazer o confronto das memórias, com a confiança, mas ainda estou a trabalhar nele [risos].