Team SCA. Os cadernos de Lanzarote

Team SCA. Os cadernos de Lanzarote


Conheça o dia-a-dia e os desafios de preparar uma corrida de nove meses e onde tudo pode acontecer.


Foram 13 anos sem uma equipa feminina na regata mais dura do mundo, até entrar em cena a Team SCA. Mas as velejadoras não queriam ser a jangada de pedra entre os barcos Volvo 65. Assim, as candidatas escolhidas rumaram às Canárias, onde tiveram de aguentar 18 meses de intensa preparação. Conheça o dia-a-dia e os desafios de preparar uma corrida de nove meses e onde tudo pode acontecer.

“É difícil simular uma regata de nove meses. Cada dia são novos desafios”, explica Joca Santorini, treinador da Team SCA, a única equipa feminina da Volvo Ocean Race (VOR). Obrasileiro de 37 anos já venceu a prova como tripulante, em 2009. Agora tenta transmitir a sua experiência a um grupo sedento de conhecimentos. Desde 2001/02 que a VOR não tinha uma equipa de mulheres: “Neste desfasamento de 13 anos criou-se uma geração de velejadoras sem experiência e de velejadores com muita experiência.”

A SCA, uma empresa sueca, foi a primeira a inscrever-se (em 2012) para 2014/15. Com os homens ocupados a competir, as mulheres só tinham um trunfo do seu lado:tempo. A equipa montou a sua base de treino nas ilhas Canárias e o programa de preparação começou logo em Fevereiro de 2013. Chegaram 400 candidaturas de todo o mundo e as melhores 40 foram seleccionadas para ir a Lanzarote. “Estiveram lá por períodos longos a trabalhar connosco. No final chegámos ao grupo de 13 [mais o 14.o elemento, a repórter a bordo, uma imposição dos regulamentos].”

“Fazíamos todo o tipo de treino físico e depois saíamos a navegar dois, três ou mais dias. Trabalhávamos cinco ou seis dias por semana. Um dia normal para nós era de 11 ou 12 horas de trabalho. Foi muito intenso, não tínhamos muito descanso, mas era necessário para estar bem no barco”, conta ao i Justine Mettraux. A velejadora suíça de 28 anos completou uma Mini-Transat (regata transatlântica a solo) em Dezembro de 2013 e acabou por se juntar ao grupo mais tarde: “Havia raparigas que estavam lá há quase um ano, por isso tive de aprender o mais depressa possível e chegar ao nível delas, no barco e fisicamente. Trabalhei muito no ginásio para melhorar. Custou-me bastante ao início.”

As mulheres foram submetidas a duríssimos treinos com o preparador físico Santi Casanova, que já trabalhou em provas como o rali Dakar, torneios de ténis ATP ou atletismo. Mas aqui tudo é diferente. “A competição dura nove meses. O Dakar são 14 dias mas é garantido que em todos vais comer, dormir, descansar ou recuperar com um fisioterapeuta, se for necessário. Aqui não, as meninas desaparecem no mar durante um mês. O mais importante é a preparação, e em todos os aspectos. É muito complicado estalar os dedos e convocar uma equipa um dia antes da largada, não é possível. Estas coisas não se podem fazer com pressa”, diz.

A jornada começava normalmente às sete da manhã, com um hora e meia de ginásio. O resto do dia de treino podia ser muito variado, de velejar a andar de bicicleta, correr ou fazer exercícios com um carácter mia lúdico. Joca Signorini recorda, orgulhoso, os progressos das meninas. “Quando elas chegaram fizemos vários testes. Alguns meses depois a pior já estava melhor que a 1.a classificada no início”.

dedicação incrível A britânica Dee Caffari é uma das mais experientes da equipa – é a única mulher a ter velejado sozinha à volta do mundo em três ocasiões.“Acho que o mais difícil [em Lanzarote] foi organizar a equipa e tirar o melhor de cada uma, perceber qual o melhor papel a bordo. Para mim o mais difícil foi não fazer tudo, ter de me centrar só numa função.” A preparação física e mental é exigente para que as velejadoras possam superar todas as dificuldades ao longo da regata que começou em Outubro (Alicante, Espanha) e termina este mês em Gotemburgo.

“No barco é muito intenso, vivemos em ciclos de quatro horas, mas quando estás fora do teu turno não quer dizer que possas descansar. Pode haver uma mudança de vela ou uma manobra”, explica Dee. A dificuldade aumenta quando as decisões têm de ser tomadas com cansaço, frio, falta de sono ou tudo junto, vivendo num espaço exíguo com mais 13 mulheres durante um mês. Antes de a prova começar, a Team SCA fez algumas regatas na Europa e duas travessias do Atlântico. “Temos falta de experiência em comparação com os outros barcos, e tínhamos de diminuir essa distância. E a única forma foi treinar, treinar, treinar e não parar de treinar”, garante Carolijn Brouwer. A holandesa viveu 13 anos no Brasil e fala português fluente.

Aos dez anos começou a viajar num pequeno veleiro que os pais tinham em Niterói (Rio de Janeiro). Gostou da liberdade que o mar lhe proporcionava e, naturalmente, juntou-lhe o ingrediente de que precisava: competição. Fez duas etapas da VOR em 2001/02 e desde então sonhava completar a prova. Em 2015 é uma das três mães entre a tripulação da Team SCA, algo que que não a levou a desistir. “É o obstáculo maior para mim nesta regata. Tenho uma baby-sitter que cuida do meu filho como uma segunda mãe, dá a atenção, o carinho e o amor que ele precisa e eu posso partir sossegada. Essa foi uma das condições para estar aqui, sem isso não poderia fazer o meu trabalho. Quando estou no barco quase não penso nele, o foco é na tarefa: andar o mais depressa possível.”

Os duros dias de treino transformaram-se em semanas, que se foram transformando em meses. A odisseia das velejadoras da Team SCA em Lanzarote durou um ano e meio. “É necessário ser rigoroso e aprender a sofrer. Não é um passeio no campo. Precisas de sofrer em terra, treinar forte, para ganhar as qualidades físicas para que a regata se torne mais fácil”, afirma Santi. Durante otempo passado no mar, nas nove etapas (divididas por nove meses), as tripulantes ingerem comida desidratada e barras energéticas. É preciso ganhar peso para as perdas que se vão seguir quase inevitavelmente. “O evento vai-te degradar, não há como escapar. Então é melhor que comeces o mais forte possível para que a degradação seja o mais lenta possível e aproveites os momentos de recuperação em terra após as etapas.”

Uma das dificuldades da equipa técnica foi preparar um programa de treinos dirigido a um grupo de velejadoras bastante heterogéneo. “Tentámos fazê-lo o mais seguro possível. Elas vinham de diferentes fases da vida, umas tinham sido mães, outras campeãs olímpicas, outras sem programas rigorosos. Para fazer isto é preciso um grande rigor e controlo”, confessa Santi. Joca, que já completou três VOR, diz que ter uma equipa feminina não o fez mudar a preparação, centrada nos aspectos técnicos. “Tentamos passar o mais informação possível e por vezes não conseguiam digerir tanta coisa. Mas impressiona-me muito a maneira como elas se desenvolvem ao longo do tempo, a determinação, a concentração, o profissionalismo, é muito gratificante de se ver. É uma lição grande para mim, que posso levar para o futuro. A motivação e a dedicação delas são incríveis.”

Ocorpo e a mente destas 13 tripulantes são levados ao extremo. Primeiro na dureza da estada em Lanzarote, depois na “realidade” da corrida. A cabeça tem de conseguir reagir aos desafios que vão surgindo. Carolijn diz que sentir-se “muito forte fisicamente e com boa saúde” é ao mesmo tempo “uma preparação mental”. No interior das quadro paredes de um ginásio, o suor é quem mais ordena, seja numa equipa masculina seja feminina. “O trabalho é o mesmo. A única diferença é que um homem pode puxar um peso de 120 quilos e a mulher puxa 80. Em certos aspectos elas são melhores, noutros os homens são melhores. No final há um equilíbrio. Gostamos de fazer ginásio com elas para as apertar, num pouco de competição saudável”, revela Santi Casanova.

Durante os 18 meses que durou a preparação em Lanzarote, Carolijn destaca o team building. “Vivemos como família, das 7 da manhã às 9 da noite, estávamos sempre juntas.” As mulheres foram submetidas a todo o tipo de provas, das mais duras a treinos com carácter lúdico, para aliviar a carga física e emocional. Um dia chegaram ao ginásio e ficaram uma hora a jogar ao mata. O que é que isso tem a ver com vela? Amanhã contaremos as aventuras da Team SCA na VOR e ficará a perceber. É que, no mar, (quase) tudo pode acontecer.