Culturas judiciárias


Com uma cultura conformista, as instituições tendem a definhare a perder a sua legitimidade social


1. Ouvi dizer, há muito tempo, sobre juristas e magistrados que os que só sabiam de direito nem de direito verdadeiramente sabiam.

Não sei se, originalmente, tal frase foi pensada para ser aplicada aos magistrados, mas sem dúvida que a sua referência ao mundo da justiça a guardou na minha memória.

2. Trabalhei muitos anos com magistrados de várias idades e gerações e sempre me intrigaram sobretudo os que, sem tomar posição sobre o que ocorria à sua volta, se justificavam dizendo não terem tempo para se dedicarem a ler mais do que os arestos dos tribunais, as circulares e alguns estudos doutrinais.

A verdade é que os que assim falavam liam, afinal, mais do que admitiam em público: centravam-se, porém, quase sempre nos jornais desportivos.

Nada me move, é claro, contra a leitura de jornais desportivos, tendo alguns deles chegado a ser conhecidos pela qualidade dos seus escritos.

Em todo o caso – reconheçamos –, como leitura complementar ou alternativa do direito, como instrumento cultural apto a ajudar a decifrar a vida e a resolver os seus problemas, tal leitura parece-me, evidentemente, insuficiente para um magistrado.

Ninguém tem a ver com os gostos e as opções culturais de cada um e menos ainda com as leituras que faz.
O problema não é esse.

O que importa é o que tal atitude de aparente “encapsulamento” cultural e corporativo – verdadeira ou falsa – deixa transparecer quando transposta para a conduta institucional de uma magistratura.

Com efeito, muitos dos que assim pensavam – ou alardeavam pensar – faziam–no sobretudo para poder caminhar por entre os pingos da chuva.

Daí, também, a razão de ser do formalismo de muitas das suas decisões.

Verdade é que, no plano da progressão na carreira, tal tipo de atitude costumava compensar.

O que nunca compensou foi, de facto, a expressão clara de ideias que abalassem, mesmo que perfunctoriamente, a cultura da apatia e do compromisso.

Ora, quando se deixa sedimentar uma atitude conformista, as instituições tendem a definhar e a perder a sua legitimidade social: no fundo, perdem a sua razão de ser, pois só na aparência cumprem as missões para que foram criadas.

Foi isso que demasiadas vezes afectou a credibilidade da justiça.

3. Hoje, as novas gerações ultrapassaram já, verdadeiramente, o paradigma de magistrado ensimesmado, monolítico e pretensamente alheado do mundo.

Todavia, mesmo que caído em desuso, esse padrão de magistrado continua influente.

A magistratura do MP, nos anos mais recentes, tem, ainda assim, vindo consistentemente a procurar romper com uma certa cultura de silêncio comprometido e imobilismo acrítico que muito havia debilitado a sua imagem pública.

Importa, porém, esclarecer: exprimir ideias e romper corajosamente com culturas de silêncio e passividade não é o mesmo que manifestar irresponsavelmente estados de alma e tomar abertamente partido nas contendas judiciais.

Tais condutas deploráveis são, afinal, ainda a consequência e a expressão nefasta – mas já irreprimível – dessa mesma cultura acrítica, ensimesmada e corporativa.

Muitos são pois, na verdade, os hábitos e obstáculos culturais e institucionais que ainda é imperativo remover.

4. O Papa Francisco – sempre inspirador – disse recentemente: “É melhor uma Igreja ferida, mas que faz o seu caminho, do que uma Igreja doente porque se encerra em si mesma.”

Pois é: não será esse, afinal, um desafio para todas as instituições – mesmo que terrenas – cuja finalidade é a procura da verdade e a realização da justiça?

Jurista. Escreve à terça-feira


Culturas judiciárias


Com uma cultura conformista, as instituições tendem a definhare a perder a sua legitimidade social


1. Ouvi dizer, há muito tempo, sobre juristas e magistrados que os que só sabiam de direito nem de direito verdadeiramente sabiam.

Não sei se, originalmente, tal frase foi pensada para ser aplicada aos magistrados, mas sem dúvida que a sua referência ao mundo da justiça a guardou na minha memória.

2. Trabalhei muitos anos com magistrados de várias idades e gerações e sempre me intrigaram sobretudo os que, sem tomar posição sobre o que ocorria à sua volta, se justificavam dizendo não terem tempo para se dedicarem a ler mais do que os arestos dos tribunais, as circulares e alguns estudos doutrinais.

A verdade é que os que assim falavam liam, afinal, mais do que admitiam em público: centravam-se, porém, quase sempre nos jornais desportivos.

Nada me move, é claro, contra a leitura de jornais desportivos, tendo alguns deles chegado a ser conhecidos pela qualidade dos seus escritos.

Em todo o caso – reconheçamos –, como leitura complementar ou alternativa do direito, como instrumento cultural apto a ajudar a decifrar a vida e a resolver os seus problemas, tal leitura parece-me, evidentemente, insuficiente para um magistrado.

Ninguém tem a ver com os gostos e as opções culturais de cada um e menos ainda com as leituras que faz.
O problema não é esse.

O que importa é o que tal atitude de aparente “encapsulamento” cultural e corporativo – verdadeira ou falsa – deixa transparecer quando transposta para a conduta institucional de uma magistratura.

Com efeito, muitos dos que assim pensavam – ou alardeavam pensar – faziam–no sobretudo para poder caminhar por entre os pingos da chuva.

Daí, também, a razão de ser do formalismo de muitas das suas decisões.

Verdade é que, no plano da progressão na carreira, tal tipo de atitude costumava compensar.

O que nunca compensou foi, de facto, a expressão clara de ideias que abalassem, mesmo que perfunctoriamente, a cultura da apatia e do compromisso.

Ora, quando se deixa sedimentar uma atitude conformista, as instituições tendem a definhar e a perder a sua legitimidade social: no fundo, perdem a sua razão de ser, pois só na aparência cumprem as missões para que foram criadas.

Foi isso que demasiadas vezes afectou a credibilidade da justiça.

3. Hoje, as novas gerações ultrapassaram já, verdadeiramente, o paradigma de magistrado ensimesmado, monolítico e pretensamente alheado do mundo.

Todavia, mesmo que caído em desuso, esse padrão de magistrado continua influente.

A magistratura do MP, nos anos mais recentes, tem, ainda assim, vindo consistentemente a procurar romper com uma certa cultura de silêncio comprometido e imobilismo acrítico que muito havia debilitado a sua imagem pública.

Importa, porém, esclarecer: exprimir ideias e romper corajosamente com culturas de silêncio e passividade não é o mesmo que manifestar irresponsavelmente estados de alma e tomar abertamente partido nas contendas judiciais.

Tais condutas deploráveis são, afinal, ainda a consequência e a expressão nefasta – mas já irreprimível – dessa mesma cultura acrítica, ensimesmada e corporativa.

Muitos são pois, na verdade, os hábitos e obstáculos culturais e institucionais que ainda é imperativo remover.

4. O Papa Francisco – sempre inspirador – disse recentemente: “É melhor uma Igreja ferida, mas que faz o seu caminho, do que uma Igreja doente porque se encerra em si mesma.”

Pois é: não será esse, afinal, um desafio para todas as instituições – mesmo que terrenas – cuja finalidade é a procura da verdade e a realização da justiça?

Jurista. Escreve à terça-feira