O homem que começou a dar nas vistas como relações públicas de uma marca de relógios entrou na FIFA para tentar encontrar dinheiro desesperadamente e foi crescendo na sombra do brasileiro João Havelange. As polémicas sucederam-se e a forma como encontrou aliados em zonas por explorar não serviu para manter a imagem limpa. Diz adeus 17 anos depois da primeira eleição e com 40 de casa. Sai sem glória e empurrado pelas suspeitas.
Joseph Blatter é um homem que nunca gozou de grande popularidade em Portugal. Ao contrário do antecessor, João Havelange, que falava a língua e até está directamente ligado a um dos maiores deslizes da televisão portuguesa na atribuição de um prémio, o suíço esteve sempre distante. E, no meio de tantas declarações polémicas ao longo de um reinado de 17 anos, Portugal foi visado em 2013. Ou melhor, Cristiano Ronaldo e a sua guerra com Lionel Messi pelo estatuto de melhor jogador do mundo.
Disse Blatter, durante uma conferência em Inglaterra: “São ambos excepcionais mas totalmente diferentes. O Messi é o bom rapaz que todos os pais sonham ter em casa. É rápido e parece dançar em casa. É um excelente homem. Ronaldo é outra coisa. É um comandante no campo [afirma enquanto acompanha o discurso com gestos pouco articulados]. É essa a diferença que dá brilho ao futebol. Um gasta mais dinheiro no cabeleireiro que o outro, mas isso não interessa. Gosto de ambos, mas prefiro Messi.”
O estatuto que Blatter imputou a Ronaldo foi o mesmo que teve durante anos na FIFA. Se Stanley Rous, presidente da FIFA entre 1961 e 1974, teve um passado directo no futebol como árbitro, João Havelange deu início a quatro décadas de homens de negócios. O brasileiro percebeu cedo como ganhar poder com o fenómeno de futebol e contou com um soldado raso muito valioso em 1975, ano em que Joseph Blatter chegou ao organismo mundial com a tarefa espinhosa de angariar dinheiro e patrocinadores para uma instituição que tinha a corda na garganta. O cartão de apresentação desportivo era muito pequeno.
A biografia disponibilizada pelo site da FIFA destaca o passado de jogador de futebol entre 1948 e 1971, na liga amadora suíça, mas não é o suficiente para garantir uma ligação valiosa à modalidade. O contacto com o desporto sempre existiu mas de um ponto de vista burocrático, ora como membro da direcção do Neuchâtel Xamax (1970 a 1975), ora como secretário-geral da federação suíça de hóquei no gelo ou como contribuidor na organização dos Jogos Olímpicos de 1972 e 1976. E em 1975 sentiu que estava na hora de dar um novo passo, abandonando o cargo de relações públicas da marca de relógios Longines e abraçando um desafio complicado na FIFA.
Dizer que Blatter respondeu a esse chamamento é uma forma de ver o que se passou.
A outra destaca que foi Horst Dassler, representante da Adidas, a reparar no trabalho desempenhado pelo suíço e a sugeri-lo a João Havelange. De acordo com Guido Tognoni, director de comunicação da FIFA na década de 90, o salário de Blatter nos primeiros meses foi pago pela própria Adidas porque a FIFA não tinha verbas suficientes.
Com as coisas a andar, Blatter começou a sua marcha triunfal na hierarquia da FIFA. O suíço era valorizado pela sua rede de contactos e esteve directamente ligado ao aparecimento das principais marcas associadas ao organismo, como a Coca-Cola e a Adidas.
O dinheiro que arranjou ajudou a tirar a FIFA do sufoco e fê-lo cair nas graças de Havelange. Tanto que em 1981, apenas seis anos depois de entrar discretamente por uma porta dos fundos, foi promovido a secretário-geral, cargo que desempenhou até 1998. O suíço era fiel e o brasileiro gostava disso.
Crescer debaixo da asa de Havelange fez com que Blatter explorasse e conhecesse a fundo os meandros das relações de poder. Ligado às políticas de desenvolvimento, estreitou laços com federações de países em crescimento. Os principais focos de poder continuavam a centrar-se na Europa, mas na altura de votar não havia supremacia de género algum. Isso fez a diferença no passado, com João Havelange, e voltaria a fazer com Blatter, quando o brasileiro decidiu abandonar o cargo após 24 anos de poder. O barco estava à deriva – os primeiros relatos de práticas erradas começavam a surgir – e Blatter lutou pela posição de comandante.
Para o conseguir, nas eleições de Junho de 1998, contra o sueco Lennart Johansson, então presidente da UEFA, decalcou a estratégia vencedora de Havelange em 1974. Aproveitando um jacto do emir do Qatar para fazer campanha, viajou pelos países africanos mais pobres à caça do voto e contou com a ajuda activa de Mohamed bin Hammam. Os lóbis eram fortes e a sua candidatura foi acusada de pagar 50 mil dólares por voto. Johansson pode ter partido como favorito mas os resultados deram uma vitória de 111-80 a Blatter nas vésperas do arranque do Mundial de França. As suspeitas de corrupção e o escândalo com um alegado suborno de 100 mil dólares à federação somali existiram, aliadas às propostas de 50 mil euros dias antes da votação, mas Blatter afastou sempre o ónus de culpa:“Eu não estava lá, por isso não posso ter sido eu.”
O suíço inaugurava oficialmente uma estratégia de defesa em que os outros podem ter cometido crimes mas em relação a ele não havia provas.
O discurso de apresentação do oitavo presidente da FIFA também encontrou grandes pontos de contacto com o mais recente. “Sou um servo do futebol. Vou jogar, viver e respirar futebol”, prometeu.
A FIFA cresceu e alargou a sua projecção. O Mundial de França foi o primeiro com 32 equipas e o seguinte, na Coreia doSul e no Japão, seria o primeiro disputado na Ásia – ambas as medidas foram tomadas ainda no mandato de Havelange. Mas havia mais a fazer, mais a ganhar, mais a inovar. E também mais a esconder. Em 2001, Blatter deparou-se com o primeiro grande problema dos seus 17 anos de mandato com a falência da ISL (International Sports of Leisure), uma empresa de marketing com laços muito estreitos com a FIFA, especializada na compra e venda de direitos das competições do organismo de futebol e criada por… Horst Dassler – precisamente o homem que havia recomendado Blatter a Havelange.
As dívidas da ISL eram superiores a 210 milhões de euros e juntaram-se a um prejuízo da FIFA que rondava os 110 milhões de euros. Michel Zen-Ruffinen, secretário-geral da FIFA em 2002, compilou um documento de 30 páginas que enumerava práticas pouco aconselhadas na gestão do organismo. Zen-Ruffinen envolvia Blatter e acusava-o de ter assumido a gestão e a administração da organização. Mas o suíço garantia desconhecer os valores antes das ocorrências, levando oConselho da FIFA a destacar a invulgaridade de alguém a ocupar um lugar com tanto poder não ter tido conhecimento do que se estava a passar. As autoridades suíças entenderam que Blatter não teve comportamento criminoso e Zen-Ruffinen foi afastado do cargo.
A marcha de Blatter transformava-se em corrida. Os ataques e as suspeitas continuaram a chegar, mas a servidão que prometera seria cumprida. Em 2002, antes do Mundial da Coreia do Sul e do Japão, foi reconduzido para um segundo mandato, derrotando o camaronês Issa Hayatou por 139-56. Era a altura de apostar ainda mais na chegada da FIFA aos novos mercados.
O objectivo de organizar uma fase final em África era cada vez mais forte, mas na primeira votação durante o seu reinado (Julho de 2000) a Alemanha ganhou a corrida à África do Sul na organização da competição de 2006 por um voto (12 contra 11). A 15 de Maio de 2004 nem havia outra solução: Blatter criara um regulamento de rotatividade continental e era garantido que o Mundial de 2010 seria organizado por África. Aí a África do Sul bateu a concorrência de Marrocos e do Egipto.
A era de Blatter atravessava uma fase mais tranquila e em 2007 ganhou as eleições para um terceiro mandato sem oposição. Continuou a batalha no aumento de representatividade mundial na FIFA – algo que aos votos nunca faria mal –, viu os seus executivos atribuírem as fases finais à Rússia (2018)e ao Qatar (2022) e partiu para umas eleições em 2011 em que parecia destinado a defrontar o antigo parceiro de luxo, o qatari Bin Hammam.
Só que o adversário acabou suspenso pelo Comité de Ética da FIFA na sequência de ter oferecido cerca de 44 mil dólares a cada país da CONCACAF em troca de votos. Mais uma vez, traçou-se a diferença entre Blatter e os que eram apanhados. O suíço prometeu que aquela seria a sua última candidatura e ganhou com 186 de 203 votos.
O passado recente trouxe uma espiral de problemas a Blatter, que voltou a ser salvo pelas decisões finais, como quando foi considerado inocente pelo Comité de Ética de pagamentos ilegais a executivos da FIFA, entre 1992 e 2000. Havelange, por outro lado, não teve a mesma sorte e foi forçado a afastar-se do cargo de presidente honorário.
As declarações que fazia, não só sobre Ronaldo, eram pregos no caixão da opinião pública (a começar em as mulheres deverem jogar com calções mais curtos e camisolas justas e a acabar em a solução para o racismo dentro de campo poder ser resolvido com um aperto de mão, passando pela opinião de que haveria países sul-americanos que até aplaudiriam o caso extraconjugal de John Terry).
A resistência de Blatter terminou esta semana. O suíço ainda somou nova vitória, mas a pressão provocada pela detenção de dirigentes da FIFA, as acusações ao seu secretário-geral (Jérôme Valcke) e a promessa de que a investigação chegaria a ele precipitou a demissão.
“Embora tenha um mandato dos membros da FIFA, não sinto que tenha um mandato do mundo inteiro do futebol, dos adeptos, dos clubes, das pessoas que vivem, respiram e amam futebol como nós na FIFA”, lamentou. O comandante vai mesmo abandonar o barco. Poderá é não ser o último.