Há dias fomos dar uma volta para apanhar ar, dado que o dia estava ameno, e levámos connosco a nossa cadela, a Tenrinha.
Resolvemos ir para um local que é aprazível e do qual as crianças gostam: a capelinha de São Jerónimo, no Restelo, uma capela do séc. XVI com decoração gótica manuelina e com excelente vista sobre o Tejo.
O jardim relvado que fica à frente da capela está muito maltratado, com a relva mais parecendo uma seara acabada de cortar. Jogar à bola, como estivemos a fazer, é uma «atividade de alto risco» porque, quando do regresso a casa, é garantida uma enorme tarefa de Betadine e creme Nivea nos arranhões causados pelas plantas selvagens e pela floração das gramíneas. Mas adiante.
Sentados num banco a ler os jornais de sábado, numa clareira que fica um pouco abaixo do relvado, com a Tenrinha deitada a gozar da brisa que atenuava a canícula, vimos aparecer um cão Labrador, de bonito porte, bem tratado, mas à solta.
A nossa cadela, depois de ter sido quase morta por cães e posteriormente resgatada, tem por alguns dos seus congéneres uma natural desconfiança. É natural, normal e saudável. Não faríamos o mesmo?
A chegada do Labrador, sem trela e aos pulos, causou algum bulício no sistema e interrompeu a nossa paz e a tranquilidade – nossa e da nossa cadela, que já dormitava.
A senhora que a trazia, à solta, com o uniforme de empregada doméstica, já tinha sido avisada que estava ali um cão e que o melhor seria prender o dela com a trela, para evitar situações conflituosas. Não quis saber.
Claro que o cão veio ter com a nossa, gerou-se uma pequena questiúncula canídea e, quando dissemos que era aconselhável (e que era da lei) trazer os animais presos, exclamou: «Mas este é cão de embaixador!». A princípio pensei que se referia a «cão do embaixador», dado que conheço um, que mora ali e tem cão. Mas não me parecia o Simón do meu amigo Jorge Arguello. «Cão do embaixador?», perguntei, a ver se me dizia de quem era. Fitou-me, olhos nos olhos, e respondeu, chocada: «Cão DE embaixador!», realçando a indefinição do artigo possessivo.
«Qual a diferença se fosse cão DE pedreiro? Não têm todos de andar de trela?» – atrevi-me. A minha pergunta gerou uma onda de desprezo. «Cão DE embaixador. De pedreiro não teria educação. O senhor embaixador tem posses e o cão frequenta uma escola privada!”. Como quem diz, “toma e embrulha!”. A nossa rafeira, semi-podenga, deitada ao pé de mim observava.
Entrámos então num diálogo assaz curioso sobre «direitos, liberdades e garantias, embaixadores e pedreiros, acatar ou não leis nacionais…», mas mesmo depois de termos avisado que um cão à solta iria dar mau resultado, preferiu manter a sua postura altiva e pesporrente e dizer: «Se vierem aqui de manhã TODOS os cães andam sem trela e assim é que é!» – talvez essa a explicação dos múltiplos cocós que inundam a relva! Afastou-se, sobranceira e quase vergada pela soberba. O cão, esse, andava por aqui e por ali, provavelmente à procura do melhor local para fazer chichi, porque cão «de embaixador» também tem uma bexiga com capacidade limitada.
Talvez por ter vivido a infância e a adolescência naquele bairro, lembrei-me de uma música que trauteava de cor, do Barata Moura;
– Eu sou o cão D. Pantaleão!
– E eu sou o cão apenas cão…
Assim vai a vida… Eu não gosto de trela, mas não gosto sobretudo de pessoas mais papistas do que o Papa e quase pensei em escrever ao camarada Jerónimo a denunciar esta traição da empregada à dinâmica histórica do proletariado.
«Todos os animais são iguais, mas uns mais iguais do que outros», escreveu Orwell. A Tenrinha remeteu-se à sua condição de «cão de classe média», esmagada pelo estatuto do outro canídeo. «Cão de Embaixador».
Como diria o Fernando Pessa: «E esta, hein?». Ou «E esta, Au-au?»…
Pediatra
Escreve à terça-feira