O verdadeiro Charlie ficou rico e agora já não é bem a mesma coisa

O verdadeiro Charlie ficou rico e agora já não é bem a mesma coisa


A revista satírica “Charlie Hebdo” tem hoje mais dinheiro que nunca, mas arrisca desmoronar-se.


O dinheiro tem um talento especial para produzir metamorfoses e, apenas quatro meses depois da matança na sua redacção, a “Charlie Hebdo” entrou numa profunda crise. Os tempos difíceis da publicação satírica não se devem tanto aos nove membros que perdeu, mas sobretudo à fenomenal onda de solidariedade na sequência do ataque dos extremistas islâmicos, que não só transformou a revista num ícone da liberdade de expressão, como – entre donativos, vendas e novas subscrições – fez chover na conta mais dinheiro que nunca: 30 milhões de euros. 

Uma parte do dinheiro seria entregue às famílias das vítimas. Era esse o plano após o atentado, no dia 7 de Janeiro, mas até ao momento nada mais foi adiantado sobre o assunto. A opacidade passou a ser a regra nas relações com o resto da imprensa. Quanto à propriedade da revista, esta divide-se em três: 40% passaram para os pais do antigo director, Stéphane Charbonnier (Charb), outros 40% estão nas mãos do actual responsável, Riss, e os restantes 20% pertencem ao director financeiro, Eric Portheault.

Luz, o responsável pelo cartoon de Maomé que surgiu na capa do número que chegou a todo o mundo no dia 14 de Janeiro, ameaça abandonar a revista, descontente com a forma como esta tem sido dirigida ultimamente. Zineb El Rhazoui, uma jornalista marroquina que assinou artigos contra os extremistas islâmicos e vive, por isso, ameaçada de morte, recebeu na quarta-feira uma carta da chefe dos recursos humanos que a convocava para uma reunião. Seria despedida e ser-lhe-ia comunicada a sua suspensão pelas suas faltas ao trabalho. El Rhazoui divulgou a carta e, com ela, um comunicado em que explica a sua situação actual: “O meu marido perdeu o emprego porque os jihadistas revelaram o seu local de trabalho. Eu estou sob ameaça e a viver em casa de amigos. Agora, a revista despede-me… Bravo, Charlie”, ironizou, declarando-se escandalizada com a forma como está a ser tratada pela direcção.

O primeiro conflito de contornos sórdidos envolveu Jeannette Bougrab, ex-secretária de Estado de Sarkozy e companheira de Charb, que foi humilhada pelos pais e irmãos deste por ter aparecido a seguir à sua morte lamentando, chorosa, a sua perda. A família não apenas negou que houvesse uma relação entre os dois como a impediu de estar presente no funeral. 
No livro que acaba de publicar, “Maudites” (Malditos), faz um ajuste de contas com os que a humilharam, tendo entretanto aproveitado uma entrevista à “Paris Match” para mostrar as fotos em que surge ao lado de Charb. Numa outra entrevista, à “Valeurs Actuelles”, chama a Luz “medíocre” e “usurpador”, criticando a sua decisão de não voltar a caricaturar Maomé. Segundo ela, Luz “terminou o trabalho” dos jihadistas.

Na sequência das tensões com Bougrab, 15 membros da redacção, entre os quais Luz e Zineb El Rhazoui, publicaram em Março um manifesto no “Le Monde” em que reclamam uma reorganização da revista e uma maior transparência na gestão.
Há umas semanas, Luz contou à revista “Les Inrockuptibles” que não iria voltar a caricaturar Maomé, mas disse também que “após os atentados, a estrutura da revista se desmoronou” e questionou qual a necessidade de esta ter contratado como porta-voz Anne Hommel, amiga do ex-director do FMI caído em desgraça, Dominique Strauss-Kahn.