“Não era a repressão a grande diferença. As pessoas pensavam de outra maneira. E havia ajuntamentos e ocasiões em que as forças da ordem ultrapassavam os limites. Um caso flagrante aconteceu quando a polícia entrou pela Universidade de Lisboa dentro, era Marcello Caetano reitor, para travar as manifestações estudantis.” A história é contada por Pedro Feytor Pinto, director de Informação de Marcello Caetano e responsável pelas negociações no Quartel do Carmo no dia em que o regime caiu. A conversa é a propósito dos confrontos de domingo em Lisboa, Porto e Guimarães, que envolveram a PSP e adeptos de futebol.
“Não tem a ver com medo”, mas com a legitimidade para exercer o poder. Acontece que, hoje, “a polícia, que é quem mantém a ordem, se sentiu desautorizada”, e consequentemente “desprotegida”. Neste ponto Joaquim Silva Pinto, ex-ministro das Corporações e da Segurança Social, está de acordo: “Atrapalhamo-nos na gestão.” E defende que tudo o que aconteceu podia ter sido evitado se a recomendação da polícia tivesse sido cumprida: “Acontece que a euforia e o populismo do Partido Socialista foram imprudentes.” A crítica vai directa para a autarquia de Lisboa, que autorizou a festa do Benfica no Marquês de Pombal apesar do parecer negativo da PSP. “O presidente da câmara foi muito jovem e muito benfiquista”, diria depois Feytor Pinto.
Que, voltando à história da Universidade de Lisboa, conta o que se seguiu. “Numa reunião do Conselho, Salazar ouviu alguns dos seus ministros. O da Educação falou da situação horrível dos alunos, o das Corporações [Trabalho], lembrou que os professores eram mal pagos e o do Interior falou na falta de meios da polícia. No final Salazar responde: tem graça, estava aqui a ver se me lembrava de quando foi que proibi de fazer todas essas coisas que os senhores dizem que não foram feitas.”
Mas havia consequências. Muitas vezes não aconteciam logo de seguida, “até porque Salazar não gostava de ceder a pressões externas”, mas, passado algum tempo, “lá um ministro recebia um cartão que punha fim aos sacrifícios feitos em nome da pátria”.
Silva Pinto lembra que “um regime autoritário é sempre um regime excessivo. Mas é também mais favorável à disciplina. Se não queremos um regime autoritário, temos de nos preparar para ver essa autoridade diminuída”. O equilíbrio está em encontrar “melhores formas do exercício da autoridade”, já que “estamos a passar de um regime de liberdade para a libertinagem”. Aqui “a fronteira tem de ser sempre a lei”.
Alexandre Vaz Pinto, subsecretário de Estado do Comércio de Marcello, teme que se caia em exageros ao passar por cima das polícias por causa de fenómenos isolados e de “energúmenos que não cumprem nada. Deveria haver uma atitude pública de protecção do direito das polícias de intervirem, prevenindo excessos”.
“Hoje temos melhor polícia”, garante Feytor Pinto. “São mais bem preparados, mais bem fardados e mais bem pagos.” Acontece que “as mentalidades são agora muito diferentes das de então e nesta situação não se acautelaram devidamente os riscos. Sempre se achou que Portugal era um país de brandos costumes, mas temos de ser mais prudentes, o mundo mudou, as tensões são maiores. E o campo de futebol acaba por ser a catarse”.
Por isso mesmo, “o mais importante é a formação das polícias e dos cidadãos”. A liberdade implica mais deveres que direitos, avisa. Mas muito bem estamos nós, adverte: “Tínhamos condições para enfrentar casos bem mais gravosos. Já viu a calma com que se aceitam as greves no metro? Isto é que é consciência cívica, e a nossa democracia só tem 40 anos”, remata.