Marilyn Mosby. Como uma ferida no joelho pode acabar com seis polícias no banco dos réus

Marilyn Mosby. Como uma ferida no joelho pode acabar com seis polícias no banco dos réus


Filha e neta de polícias, a procuradora de Baltimore tem pela frente uma missão difícil: acusar de homicídio os seis agentes envolvidos na morte de Freddie Gray, em Baltimore.


No cargo há apenas quatro meses, foi rápida na resposta quando a sua avó, de 77 anos –casada com um polícia –, lhe perguntou o que pensava de tudo isto: “Não podes seguir os teus instintos. Tens de seguir as provas”

O bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova Iorque. Poderá? A teoria do caos diz que sim. E se em 1986, Marilyn não tivesse ido brincar para aquele quintal, atulhado de lixo e de vidro partido, talvez os seis agentes da polícia de Baltimore não estivessem a ser tão rapidamente acusados de homicídio no caso de Freddie Gray, o jovem negro vítima de brutalidade policial.

Quando a borboleta bateu as asas, Marilyn tinha apenas seis anos de idade e era criada por uma mãe solteira num bairro fundado por puritanos ingleses em 1630. Chamaram--lhe Dorchester, o nome da terra de onde saíram no país natal. Naquela dia, num bairro da cidade mais populosa do Massachusetts, a visita ao quintal vizinho deixava o joelho de Marilyn bastante magoado. Linda Thompson, a mãe extremosa e agente da polícia, não esteve com meias medidas.

Ao bom estilo americano, processou o proprietário do terreno e teve direito ao seu dia em tribunal. Ali, a miúda de seis anos ficou maravilhada com tudo o que viu e, quando o juiz lhe perguntou o que queria ser quando fosse grande, não hesitou: “Vou ser juiz.”

O princípio do sonho estava delineado, mas um outro acontecimento durante a sua adolescência iria firmar esse acordo com o destino. Em 1994, o seu primo de 16 anos foi assassinado. Não foi às mãos da polícia – o que poderia levar a crer que Marilyn Mosby, a procuradora de Baltimore que vai acusar os seis agentes de homicídio, estaria a levar a cabo uma espécie de vendetta pessoal. Não. Diron Spence foi alvejado por um traficante de droga, um adolescente com apenas mais dois anos que a vítima. Segundo o relato policial do crime – que na altura chocou o bairro e fez correr muita tinta na imprensa local – Kevin Denis, 18 anos, confundiu o primo e um dos melhores amigos de Marilyn com outra pessoa. E matou-o. O caso típico, com consequências devastadoras, de estar no sítio errado à hora errada. E esse sítio era a casa dos avós de ambos, em Boston. “Vi o sangue da minha família, o mesmo sangue que corre nas minhas veias, derramado à porta de minha casa”, recordaria Marilyn durante a sua campanha para o cargo de procuradora estatal, que culminaria na sua eleição em Novembro passado.

Foi por ali, onde o sangue do primo foi derramado, que Marilyn cresceu. Um bairro pobre de Boston, povoado de famílias negras da classe trabalhadora. Durante os primeiros anos da sua infância, Marilyn acordava às cinco da manhã em Dorchester. Esperava-a uma longa viagem de autocarro – uma hora de caminho – até à escola que frequentava num bairro rico de brancos. A futura procuradora era a única criança negra a estudar ali e não foram poucas as vezes que foi vítima de racismo.

Mas nada disso travou a miúda obstinada, adjectivo usado pela própria mãe para a descrever. Curiosa, inteligente e voraz, a sua sede de conhecimento era alimentada pela mãe, que lhe atirava livros sobre a história dos negros. Marilyn consumia um atrás do outro e interiorizava as suas raízes e a luta dos negros na América. Foi assim que tropeçou na história de Thurgood Marshall, que – nem de propósito – cresceu no mesmo bairro que Freddie Gray e se tornou um dos exemplos a seguir. Neto e bisneto de escravos, Thurgood (chamava-se Thoroughgood, mas a obrigação, e a irritação, de estar sempre a soletrar o apelido levaram-no a encurtar o nome) tornou-se o primeiro juiz afro-americano do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Empossado pelo presidente Lyndon B. Johnson, foi um importante activista de direitos civis dos negros. O fim das escolas públicas segregadas na América foi uma das suas vitórias.

Na altura em que crescia e esfolava os joelhos nos vidros do vizinho, Marilyn também secava as lágrimas no colo dos avós maternos. “Ele, o avô, foi o pai que ela nunca teve”, contou ao “Washington Post” a mãe, Linda. “Era um grande homem, com um grande coração.” O avô foi também um dos muitos familiares de Marilyn que fizeram carreira na polícia. Além dele e da mãe, dois dos seus tios tiveram orgulho em usar a farda azul. O avô, por exemplo, fez história: foi fundador da primeira associação de polícias negros do Massachusetts. Ainda assim, o brilho do distintivo nunca seduziu Mosby.

“Ela sempre quis ser advogada e trabalhar para a comunidade”, contou a mãe ao “Washington Post”, numa entrevista já depois de conhecida a acusação aos seis agentes. “Neste momento, o mundo é o palco dela e ela brilha como uma estrela.”

O seu percurso académico prosseguiu através da Universidade de Tuskegee, Alabama, onde estudou Ciência Política e conheceu o marido e pai das suas duas filhas, Nick Mosby. Seguiu-se o estudo de Direito no Boston College, onde se formou em 2005. É nessa altura que troca definitivamente a velha cidade de Boston por Baltimore, e o estado do Massachusetts pelo de Maryland. O porquê prende--se com as origens do marido, que cresceu naquela zona.

Somava-se o facto de por ali as ofertas imobiliárias serem mais baratas. Um perfil de Marilyn no “New York Times” relembra a altura em que o jovem casal procurava casa. “Ele [Nick Mosby] aponta para um edifício, com uns 20 anos, vago e em ruínas, sem telhado, e com uma árvore a sair do meio do chão e diz-me: ‘É aqui que eu quero morar.’ Eu olhei para o mercado de drogas a céu aberto, para o lixo nas ruas, para o número de casas vazia e pensei: ‘Está doido.’”

Doido ou não, o casal Mosby continua unido até hoje e a viver em Baltimore. Juntos organizam caminhadas pela paz e as fotos que vão postando ora no Instagram ora no Twitter revelam uma velha e intensa cumplicidade. Nick está a deixar a sua marca com uma bem sucedida carreira política: em 2012, um jornal local elegia-o “melhor político da cidade”. Ela fazia o seu caminho no direito. Trabalhava como conselheira legal de uma grande seguradora quando decidiu candidatar-se ao cargo que agora é seu. A sua vitória sobre Gregg Bernstein foi uma surpresa.

Mas quem elegeu Mosby não foi ao engano e não pode dizer-se estupefacto com a sua decisão no caso Gray. Os críticos acusaram-na de actuar demasiado rápido – mais por pressão mediática do que por força das provas. “Uma coisa é acusar, outra coisa é conseguir uma condenação de polícias”, escreveria no “Huffington Post” o analista político Earl Ofari Hutchinson.

Mas as estatísticas que não correm a seu favor não a afligem. Talvez por conhecer a diferença entre um polícia bom e um polícia mau, Mosby fez toda a sua campanha centrada numa ideia: acabar com a corrupção no interior das forças policiais. “A aplicação da lei está incrustada no meu ser. Sei que a maioria dos polícias arriscam a sua vida, dia sim dia não, e respeito-os. Mas reconhecendo isso também reconheço que alguns agentes usurpam a sua autoridade. Quando o fazem, temos de garantir que são responsabilizados”, disse numa entrevista à “Baltimore Magazine” em Janeiro, dias depois de tomar posse. O seu discurso, quando anunciou que ia avançar judicialmente contra os seis polícias, foi motivador. Fez muitos negros de Baltimore, habituados a serem assediados pela polícia, acreditar que haveria justiça. Mas os ventos contra Mosby têm soprado com tanta intensidade como os ventos a favor, ou mais.

A polícia de Baltimore acusou-a de conflito de interesses, por ter uma relação próxima com o advogado da família Gray. Segundo o “Baltimore Sun”, Billy Murphy terá doado à campanha de Mosby 5 mil dólares e será um dos mentores da procuradora. Na quinta-feira passada, durante uma entrevista na televisão, Murphy negou haver conflito de interesses, mas não negou os factos.

Outro dos ataque sofridos por Mosby– além de todos os que falam da sua falta de experiência – prende-se com a posição do seu marido e com a forma como o trajecto político de Nick pode ganhar fôlego se o caso da mulher for bem sucedido. Em entrevista ao “New York Times” a procuradora foi clara: “Eu defendo as leis. Ele faz as leis. E eu levarei a tribunal qualquer caso que aconteça dentro da minha jurisdição.”

A velocidade do vento cresce e as rajadas são assustadoras. Quando o tufão chegar a Baltimore haverá feridos graves. Resta saber de qual dos lados.