A partir de Setembro nenhuma criança com menos de dez anos pode aparecer em spots publicitários na China. Por cá, o Código da Publicidade estipula que os menores só podem participar em campanhas em que se verifique uma “relação directa entre eles e o produto veiculado”. No entanto, a lei está longe de ser cumprida e até parece concorrer com o Código de Trabalho, que determina que qualquer criança pode participar em actividades de natureza publicitária enquanto “actor, cantor, dançarino, figurante, músico, modelo ou manequim”, desde que a sua segurança e saúde não sejam postas em causa.
“É ilegal e ilegítimo transferir o carinho e a afectividade que temos pelas crianças para um contentor de ecoponto”, defende Paulo Morais, que agora é candidato à Presidência, mas já foi perito do Comité Económico e Social Europeu para a publicidade infantil. O exemplo serve para lembrar que as campanhas ecológicas da Sociedade Ponto Verde recorreram a menores de idade sem existir uma relação directa entre as crianças e o “objecto de propaganda”. Mas a crítica não é necessariamente partilhada por outros: “Nesse caso as campanhas têm uma componente social e não há risco de transmitir uma mensagem subliminar que prejudique a criança”, defende Graça Cabral, a assessora de Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor. Nos últimos 20 anos, a Deco nunca foi chamada a intervir na “utilização abusiva de menores” em campanhas publicitárias. Nesse capítulo, esclarece a responsável, a grande preocupação da associação gira em torno dos perigos do marketing alimentar e da associação de crianças a marcas com mensagens “enganadoras” que contribuem para o aumento da obesidade infantil: “Não se podem vender iogurtes para crescer, não é?”
Conflitos de interesses Se por um lado a proibição chinesa conforta o antigo perito do Comité Económico e Social da União Europeia, essa mesma ideia causa estranheza a Carlos Coelho. “Impedir que uma criança faça parte de um contexto global é impossível”, argumenta o especialista e gestor de marcas. “Proibir é pouco inteligente porque não se pode exigir da publicidade aquilo que é da inteira responsabilidade da sociedade e dos educadores: formar e alertar”, defende antes mesmo de admitir que a criatividade inerente ao mercado publicitário tem facilidade em se adaptar a impedimentos e arranjar novas formas de aliciar os consumidores. “Não podem entrar crianças, fazemos jogos interactivos ou product placement (publicidade indirecta no cinema e meios audiovisuais em geral)”, avisa Carlos Coelho.
Ressalvando que “a nossa situação não tem nada a ver com a da China”, a responsável pela agência de modelos e actores New Acting defende que “as nossas leis se adequam à participação de menores de idade na publicidade” e lembra que há multas pesadas para quem não respeitar os horários escolares, a segurança, as retribuições monetárias e os limites que, consoante a idade, estipulam quantas horas pode uma criança ficar num ensaio, numa gravação ou sessão fotográfica. De facto, o Código do Trabalho determina, por exemplo, que crianças de um a três anos só podem dedicar duas horas por semana a actividades publicitárias. Dos três aos sete são quatro horas semanais, dos sete aos 12 nove horas e dos 12 aos 16 doze horas, podendo, nestas idades, “qualquer dos limites ser excedido três horas caso o acréscimo de actividade ocorra em dia sem actividades escolares”.
A situação causa calafrios a Paulo Morais. A dignidade das crianças têm de estar em primeiro plano e a “falta de coragem” dos grupos parlamentares, do Ministério Público e da Comissão de Protecção de Jovens (CCPJ) contribuem para a “impunidade absoluta de grupos económicos como a EDP e as grandes superfícies comerciais, que continuam a usar crianças para a sua propaganda”. Posição mais uma vez contrariada pela Deco, que considera que as campanhas dos hiper e supermercados “também acabam por se dirigir às crianças”.
Do outro lado da barricada, a responsável da New Acting, que acompanha menores “desde os três ou quatro anos”, explica que “os pais têm mais interesse que as crianças”, mas nenhum dos seus agenciados aparece sem que a CCPJ aprove a candidatura. No mesmo sentido, o secretário executivo da Comissão Nacional de Protecção de Menores e Jovens em Risco clarifica que cabe às CCPJ locais aprovar ou chumbar os requerimentos que devem conter quer o processo clínico do menor quer o horário escolar e a descrição do ambiente familiar. “Acompanhamos as comissões, mas só elas têm poder para interferir”, garante Paulo Macedo, que se revela tranquilo em relação à participação de crianças em campanhas publicitárias, uma vez que essa actividade “pode corresponder a uma vocação”, que não deve ser inibida caso a dignidade e os direitos dos menores sejam respeitados.