Tem seis anos, chama-se Tiara e já tem a escola toda. Tiara é o nome que ela própria inventou. E quis que o apelido fosse Coelho. Vive na Casa da Criança de Tires, uma IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social criada há 14 anos pela Fundação Champagnat, que percebeu a necessidade de dar uma resposta aos filhos de reclusas, que só podiam ficar a viver com as mães na prisão até aos três anos de idade (actualmente, até aos cinco anos).
Tiara Coelho sabe tudo. Sabes porque é que a mãe foi presa? “Sei.” Queres contar? “Eu vou dizer, mas tu não vais perceber nada.” Peço-lhe que, ainda assim e se não se importar, tente explicar-me. Então, aí vai: “A mãe foi presa porque estava a vender ‘beia’”. Eu não faço ideia o que é “beia”, apenas calculo, mas ela detalha. “É uma coisa que parece terra e que se põe no chão e, se tu pisares, deixas de ter pensamentos e ficas sem memória.”
E Tiara assistiu a tudo quando a mãe foi presa. Estava no carro com uma amiga e um dos irmãos. A mãe entrou na escola para vender “aquilo”, “estavam lá polícias a ver e pumba! Quando eu fui ter com a mãe”, lembra, aflita, “ela estava a chorar muito”. Depois também não foi nada fácil. “A polícia levou a mãe e fomos para casa, e veio uma assistente [social] porque nos tratavam mal, ficávamos lá sozinhos.”
Então e o pai? “Está preso. É a segunda vez que vai para a prisão”, diz em tom desaprovador. “E sabes porque é que o meu pai não está com a minha mãe e está em Pinheiro da Cruz? Porque não é pai do meu irmão mais velho, que não está aqui, percebes, e é filho de outro pai. Ele não quer saber.”
Este é outro problema: muitas vezes, ambos os pais estão presos, conta Carla Semedo, directora da Casa da Criança de Tires. “Às vezes, as mães nem sabem quem são os pais e, muitas outras, trata-se de um negócio de família e todos os membros estão detidos.”
“A opção primeira é sempre que a criança fique com alguém dentro da família alargada, uma madrinha ou mesmo uma vizinha. A instituição é o último recurso”, diz a directora. Nesta caso, como em tantos outros, a solução foi a instituição.
O Estabelecimento Prisional de Tires tem 30 mães com 39 filhos. Nos quase 14 anos de existência – que serão celebrados no próximo dia 15 –, já passaram pela Casa da Criança de Tires 102 crianças entre os dois e os dez anos.
“Damos às crianças experiências de vida. Muitas chegam e nunca antes andaram de carro ou conheceram um cão.” Não é o caso de Tiara e dos irmãos, uma rapariga com cinco e um rapaz de oito, que já tinham nascido quando os pais foram presos.
Existem duas correntes distintas sobre esta matéria: a dos que defendem que as crianças até aos três anos (agora cinco) ficam melhor com as mães na prisão, “desde que estas tenham um comportamento parental adequado”, já que isso fortalece os laços de família; e a dos que acreditam que o ambiente da cadeia é hostil e, por isso, prejudica o desenvolvimento da criança, pelo que seria preferível viverem fora.
Carla Semedo considera que devia ser feita uma avaliação inicial para se saber se a criança deve ou não ficar, “mas apenas agora se está a começar a trabalhar nisso”.
Hoje foi dia de visita. Tiara e os manos – como todos os outros meninos na mesma situação – foram ver a mãe. Às 19h30, Tiara já está jantada e de volta à Casa da Criança. “Comi com a mãe, atum com arroz.” Quem fez? “Foi lá, elas lá trabalham. A mãe trabalha na creche, que é a coisa melhor em que lá se pode trabalhar”, diz, orgulhosa.
Confessa que só gosta de ir lá para dar beijinhos à mãe porque, de resto, “têm uma sala para bebés”, escandaliza-se, “não há mais nada”. E ela já é muito crescida para aquilo. Muitas vezes, as crianças cansam-se daquela rotina, ter de ir à prisão todas as quartas e domingos.
Tiara gosta da escola e da sua sala amarela. “Queres saber as minhas notas?” Eu quero, claro. “Tive 100%” a tudo, diz. Às vezes, os amigos também querem saber onde está a sua mãe. E ela responde-lhes como me disse a mim: “Eu vou dizer, mas vocês não vão perceber. E eu digo e eles não percebem.” Mas amigos como dantes.
Do que Tiara gostava mesmo, mesmo era que a mãe “viesse de precária para irmos com a avó e o avô ver o Jorge” (nome inventado), o irmão que tem 14 anos e está em Vila Real. “Já aconteceu uma vez”, lembra, contente.
“A mãe diz que, quando eu sair cá de casa, ela vai ter muito dinheiro e vai comprar muitas coisas. Já foi assim, sabes, quando eu tinha dois ou três anos.” E assim se despede, com um ar feliz e cheia de esperança, a Tiara, que se não existisse, teria de ser inventada.