“De que cor é?” A pergunta não foi feita para saber a cor dos cortinados, do automóvel recém-comprado ou das paredes da casa nova. Foi a primeira pergunta feita por alguns amigos e colegas de trabalho quando souberam do nascimento do bebé de Marina. Não perguntaram se era perfeito, menino ou menina, se estava bem. A mãe, branca – ou caucasiana, como seria descrita num relatório policial –, não esquece. O pai, cabo-verdiano, fica envaidecido com a robustez dos seus genes.
São cada vez mais as famílias multirraciais em Portugal: pai branco, mãe de cor, mãe branca, pai de cor. Mas que cor? As crianças também se questionam. Clara não tem o tom de pele branco da mãe nem castanho do pai. E quer saber: “Mãe, eu sou de que cor?” Marina responde. “Acho que és douradinha… O que é que te parece?”
Clara é crioula. Lá em casa não se faz distinção e Marina diz que “nem devia haver designações” de raça. “Não nos podemos deixar reger por isso.” Mas as comparações são inevitáveis, tanto quanto as diferenças que estão à vista. Mais ou menos velado, o racismo ainda existe. Mesmo num país em que o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, é casado com uma guineense, Laura Ferreira, nascida em Bissau.
Ainda assim, falar de raças é politicamente incorrecto, melindroso para alguns, caso contrário o tema seria discutido abertamente. Muitas vezes é subliminar. Marina está habituada a olhares e comentários. Concorda que fazer parte de uma família multirracial é cada vez mais normal e as diferenças vão-se esbatendo. “É preciso lembrar que em Angola ainda há alguns anos o tom de pele vinha discriminado no bilhete de identidade”, diz. Nós estamos muito longe disso.
Mas nem tudo são rosas. Portugal foi dos primeiros países a abolir a escravatura e no entanto Marina tem um receio: “Até que ponto as oportunidades estão mais vedadas a estas pessoas?” Estas pessoas são gente como Clara, diferente em coisa nenhuma, apenas no tom de pele, como todos temos uma impressão digital única. “O meu medo é que estas pessoas já partam em desvantagem. A cor ou a origem não deviam contar para nada. Ponto.”
Como para provar que tem razão, Marina explica que, no meio de brancos, ninguém sabe que ela própria é filha de mãe angolana e pai português. “Qual caucasiana, qual quê!” A miscigenação ou mestiçagem – palavra que significa a mesma coisa, apesar de ser usada por alguns com conotação negativa – está a aumentar. Em Portugal e no mundo.
Talvez entre portugueses e africanos assuma contornos específicos, porque “a colonização não é ainda um assunto bem resolvido. É muito recente, há algum complexo relativamente a esta parte da nossa história”, concede Marina. “Haverá uma geração limpa destas dores e culpas, talvez a da minha filha.”
O casamento inter-racial não é uma coisa de classes. É transversal a todos os estratos da sociedade. Por outro lado, e cada vez mais, abarca diversas raças, uma questão que tem sobretudo a ver com os movimentos migratórios.
Hoje não se trata apenas de uma herança das ex-colónias – Angola, Moçambique, Guiné ou Cabo Verde. O fenómeno migratório é actualmente muito diferente do de há 40 anos.
O Acordo de Schengen e a livre circulação de pessoas entre estados da União Europeia (excluindo Irlanda e Reino Unido) e não só (inclui Islândia, Noruega e Suíça) ditou as mudanças mais recentes. Hoje trabalha-se (haja emprego) e estuda-se em qualquer país com a maior das facilidades. E há ainda a questão da adopção.
António e Agnes, ele português, ela chinesa, conheceram-se em Londres, na faculdade. Chegaram separados ao Reino Unido mas regressaram juntos a Portugal. Actualmente têm menos de 40 anos e três filhos, todos com traços orientais bem definidos.
Mas há também os que vêm estudar para Portugal e além do diploma acabam com uma certidão matrimonial. Eles e elas. As nacionalidades são as mais diversas: indianos com portuguesas, portuguesas com africanos, portugueses de ascendência africana com chinesas. É o resultado da globalização. Que não se fica por aqui.
Lurdes e Carlos estavam há anos numa lista de espera para adoptar uma criança. A idade avançava e o bebé tardava em chegar. À medida que o tempo foi passando, os pais potenciais decidiram alargar o leque de opções para concretizar o sonho. Afinal não precisava de ser tão bebé e a cor também já não era condição. “Porque nos diziam que há muitos meninos de raça negra”, explica Lurdes. O primeiro filho chegou assim, e, nem passados nove meses, a segunda. O tom da pele é muito diferente, mas são irmãos para a vida. E a vida decorre, “mais alegre e mais tumultuosa”.
Na casa de Marina não se fala crioulo. O motivo é só um: João veio para Portugal com apenas dois anos. Mas está nos planos dos pais levar Clara a Cabo Verde, mostrar-lhe uma parte das suas raízes. Na casa de António e Agnes fala-se português, inglês e chinês. Com a mesma fluência e frequência. Na casa de Lurdes e Carlos, David e Ana falam apenas português. Em todas elas, garantem, se bebe mais de uma cultura e a vida, por vezes incerta, é mais rica.