António Tereso. O homem que arriscou a liberdade para conseguir a de sete

António Tereso. O homem que arriscou a liberdade para conseguir a de sete


Como podia um simples homem ser protagonista de uma fuga da prisão? Fingindo-se passar para o outro lado, sofrendo insultos e desprezo, e oferecendo os seus dotes de motorista e mecânico. Esta é a história de António Tereso, o homem que só fugiu porque fingiu ser traidor


Esta não é uma história comum sobre o pré-25 de Abril. Não há apenas de um lado a PIDE e do outro os seus presos políticos. É a história de um homem que para promover uma das mais emblemáticas fugas teve de aprender a viver entre os dois lados, fingindo estar apenas de um. O disfarce de traidor custou-lhe cuspidelas, insultos, desprezo. Dia e noite. Até à manhã gelada de Dezembro em que António Tereso, o ex-mecânico da prisão de Caxias para os carcereiros, o ex-traidor e o ex-“rachado” para os prisioneiros, irrompeu no carro blindado de Salazar pelo pátio adentro e levou outros sete militantes comunistas para fora do terreno da prisão. O homem que arriscou fingir-se amigo de directores, dos guardas, da PIDE, que se queixou de ter a barriga cheia de política, que teve de fingir que virava costas aos amigos, aos comunistas, aos reclusos como ele, estava a poucos meses de cumprir a pena e sair em liberdade quando aceitou ser o protagonista de um plano impossível. Se o plano falhasse, já não haveria regresso a casa. Esta é a história pouco falada de um homem que arriscou a liberdade para conseguir a de outros sete. 

Um dia, de castigo na prisão, António Tereso cruzou-se com José Magro e Afonso Gregório, do Comité Central do partido, no forte de Caxias. Magro fez-lhe a proposta:

– Olha lá, e se tu fosses para a sala dos trabalhos?

Tereso começou por negar: como seria olhado pelo partido e pelos amigos? Como se iria fingir de zangado? Andar em pancadarias com os seus?

Acabou por aceder:

– Eu aceito e vou disposto a lá deixar a pele se for preciso.

Durante a noite, na cama, deu voltas e voltas: 

– Nunca pensei que era possível fugir. Nunca.  

Era preciso arranjar um pretexto para se revoltar contra os presos. Escolheu o Matos e o Lenine, por serem os últimos a levantar-se da mesa. Naquele dia, resolveram pedir mais arroz. O prestável cantineiro Tereso deu mas a seguir simulou que estava zangado por não terem comido tudo o que estava no prato. E logo de seguida deu uns murros para chamar o guarda.

– Quero sair daqui! Ainda dou em maluco com estes gajos! Tenho a barriga cheia de política. Quero que me leve ao chefe. 

O chefe não acreditou à primeira:

– Escreva ao senhor director. Mas como o senhor é um comunista…

– Já fui! Já fui! Agora sou é comodista!

O dia em que o guarda Jaime o ajudou a escrever a carta, pedindo ao director transferência para a sala dos trabalhos, foi aquele em que os amigos lhe viraram as costas. O Magro teve de se juntar ao plano. Quando os outros se queixavam a verdade não era revelada. Magro limitava-se a dizer:

– Que queres? O tipo é assim. Quer rachar.

Um dia foi o Vilela que trepou para o seu beliche para indagar o que lhe acontecera:

– Ó Tereso, tu que eras um tipo porreiro…

Noutro dia foi o Cartaxo. Tereso, na sua estratégia de camuflagem, limitava-se a dizer:

– Não quero conversas, quero ser livre.

A partir desse dia, muita gente nunca mais lhe falou. Viram-no sair e começaram a tratá-lo por rachado. Até do Partido Comunista chegaram ordens para todas as salas: os rachados não eram pessoas que merecessem conversa, os rachados eram gente que deixara de ser camarada, os rachados eram para desprezar.
Nova fase do plano: chegado à sala dos trabalhos, era preciso conquistar os verdadeiros vira-casacas e os carcereiros.

E, sobretudo, não deixar que alguém suspeitasse. Enquanto os guardas o espreitavam repetidamente pelas seteiras do pátrio, Tereso pintava portas e janelas, varria o átrio, usava a esfregona. Quando chegou Gomes da Silva, subinspector da PIDE, Tereso concentrou-se em cair nas suas graças.

– Quer que lhe lave o carro?

Tereso lavou-o, pintou-o e até chegou a fazer de bate chapa concertando o tejadilho. O subinspector da PIDE estava rendido: um certo dia até o levou a dar um passeio à cidade. Outro dia Tereso avisou-o de que ia sem pneu sobresselente. O subinspector berrou e esperneou: tudo teria de estar em ordem antes de sair. Tereso teve de voltar a pôr o pneu no carro. Enquanto o fazia, Gomes da Silva disse:

– Será isto sabotagem?

Tereso fingiu-se de chateado:

– Eu não confundo as minhas ideias políticas com a minha honestidade profissional. Se não confia, chame outro.

O subinspector riu-se: 

– Ó homem, não se zangue, tenho toda a confiança em si!

Quando passava pelos outros presos, nas suas rondas pelo forte, explorando galerias, divisões, buracos, janelas e portas, imaginando fugas entre galinhas e coelhos e porcos, Tereso continuava a ser renegado pelos amigos. Era assim que se tratavam os traidores. O tempo passava. Tereso via guardas em cima e em baixo. Guardas em todo o lado.

– Era impossível fugir.

Um dia encheu-se de coragem e foi falar com Gomes da Silva: agora que estava prestes a sair queria um emprego na PIDE como motorista. Ao fim da terceira insistência, o subinspector deixou de ignorar: 

– Isso é que não pode ser. O senhor tem cadastro. 

Acabou por ter como garantia um emprego de motorista no forte, a troco de 1500 escudos por mês. Estava a três meses de conquistar a liberdade.

Primeiro, Tereso ofereceu-se para arrumar uma Ford V-8, que transportava 38 passageiros. Espantado com as suas capacidades ao volante, Gomes da Silva sugeriu:

– O senhor é que me vai pôr aquele carro a trabalhar.

Ao olhar para o Chrysler blindado que fora de Salazar, que hoje está no Museu do Caramulo, Tereso acreditou pela primeira vez no plano que há meses perseguia. Ao almoço, o peixe frito, o arroz e a salada nem saíram do prato. O que era preciso era pôr o carro a funcionar. Uma máquina de 4500 quilos, com motor de 8 cilindros em linha. No último sábado de reclusão, Tereso transformou o terreno da prisão numa pista de automobilismo. O estômago ardia. Sabotou os outros carros velozes para evitar perseguições. O estômago continuava a arder. Estava tudo a postos para as 9 e 30 de segunda-feira. O histórico 4 de Dezembro de 1961.

Na segunda-feira, Tereso, o futuro ex-traidor, entrou num túnel de marcha-atrás. A missão não era fácil: tinha de ir em alta velocidade mas o carro era quase tão largo como o portão. O Chrysler de 1937, de sete lugares, totalmente blindado, tinha 5,40 metros de comprimento e 1,80 metros de largura. Pequeno percalço: a roda foi à valeta. Tereso tremeu, concertou o problema e entrou no pátio. Neste momento já mais camaradas sabiam que afinal não era um Judas. Primeiro insultaram-no porque estaria a interromper-lhes o recreio. Depois, enquanto rodeavam o carro e os guardas pensavam que vinha aí briga feia, Magro gritou: Golo! 

Nunca um golo fora tão festejado por aqueles homens. Sete entraram dentro do carro que arrombaria o portão de ferro que separava a cadeia da estrada. Sete homens em fuga, torneando disparos da GNR, em direcção à auto-estrada, a caminho de Lisboa. Num carro que esteve ao serviço oficial de Salazar, e que lhes ofereceu a liberdade. A ironia não podia ser maior.