Esta vida vale o mesmo que a nossa

Esta vida vale o mesmo que a nossa


Depois de mais 700 pessoas, talvez 900, terem perdido a vida no Mediterrâneo, no domingo, três barcos emitiram ontem pedidos de socorro. Federica Mogherini admite “dever moral” da União Europeia, mas diz não haver “soluções mágicas”


Há uma semana, a Amnistia Internacional lembrava ao mundo que, no dia em que se marcavam os 103 anos do naufrágio do “Titanic”, 15 de Abril, mais um barco naufragou, desta feita ao largo da Líbia, levando consigo para as profundezas 400 pessoas que tentavam chegar à União Europeia em fuga da guerra civil no seu país. 

Só em 2014, lembrou a ONG, 3400 pessoas morreram afogadas no mar Mediterrâneo por falta de condições na travessia, mas sobretudo pelo voluntário fechar de olhos da União Europeia ao flagelo humano que se tem abatido nos últimos anos às suas portas marítimas. O equivalente a mais de dois “Titanic”, lembra a Amnistia, apontando que, a confirmarem–se os registos de mortes dos últimos meses, pelo menos duas mil pessoas já terão perdido a vida desde Janeiro de 2015.

Pouco mais de 24 horas depois de uma embarcação com cerca de 700 migrantes clandestinos – talvez 900, apontaram ontem as autoridades italianas – ter naufragado na mesma porta marítima da Europa, pelo menos três barcos de migrantes emitiram ontem pedidos de socorro. O alarme foi dado pela Organização Internacional para as Migrações (OMI), que até ao fecho desta edição não conseguiu confirmar quantas pessoas foram resgatadas com vida e quantas morreram. À mesma hora, mais de 17 embarcações, lideradas pela Guarda Costeira italiana, tentavam resgatar as vítimas da tragédia de domingo, tendo recuperado apenas 24 corpos até ao final da tarde.

Pelo menos 20 das 300 pessoas que seguiriam a bordo de uma das três embarcações em perigo já teriam morrido ao início da tarde em Lisboa, sem que o autor do pedido de auxílio tenha conseguido mencionar a localização concreta do bote no Mediterrâneo. Antes disso, a polícia marítima grega terá conseguido resgatar pelo menos 80 pessoas de uma outra embarcação encalhada na ilha de Rodes, no mar Egeu, recuperando três corpos – os de um homem, de uma mulher e de uma criança que morreram afogados.

À AFP, o porta-voz da OMI, Joel Millman, explicou que as autoridades marítimas “não têm os meios necessários para socorrer” milhares de pessoas. “A Guarda Costeira [italiana] vai provavelmente tentar redireccionar navios comerciais” para socorrer estas pessoas, avançou, com a ressalva de que a solução poderá ser ineficaz perante a recusa de muitos desses navios em colaborar nas operações de resgate. Matteo Renzi, o primeiro-ministro de Itália, acrescentou que as autoridades já estão a trabalhar com as de Malta para auxiliar as pessoas a bordo de duas das embarcações em emergência no Mediterrâneo.

Ao fecho desta edição, a Reuters avançava que pelo menos 90 pessoas foram resgatadas com vida do barco onde seguiam mais de 300, sendo 30 imediatamente transportadas para o hospital. Ficou por apurar se o barco encalhado na costa da ilha de Rodes era um dos três que emitiram os pedidos de socorro registados pela OMI.

“Distribuição ordenada” Com os naufrágios dos últimos dois dias, o primeiro na madrugada de domingo em que as centenas de migrantes clandestinos a bordo perderam a vida, o número de mortos nas entradas marítimas europeias já ultrapassa os dois mil desde o início de 2015, mostrando um aumento exponencial de vítimas que tentam fugir à instabilidade do norte de África e do Médio Oriente em pequenas embarcações carregadas de pessoas – travessias mortíferas que, na sua maioria, são geridas por criminosos que lucram com o tráfico de famílias inteiras provenientes da Líbia, da Síria e de outros países onde o caos tem reinado nos últimos anos. E com a chegada da Primavera, alertam várias organizações, o número de migrantes em fuga que encontram armadilhas em alto-mar só tenderá a aumentar.

Segundo Mauricio Scalia, procurador-geral de Palermo, na Sicília, existem neste momento “na costa líbia cerca de um milhão de pessoas prontas para sair”em direcção a uma Europa que pouco ou nada tem feito para mitigar este desastre humano. As notícias dos últimos naufrágios de barcos carregados de migrantes coincidiram com uma cimeira europeia de emergência convocada para ontem, no Luxemburgo, na qual os ministros dos Negócios Estrangeiros e do Interior dos 28 Estados-membros da UE debateram a segurança, as operações de resgate e o fluxo migratório crescente para a Europa.

No encontro, a alta representante para a Política Externa da UE, a italiana Federica Mogherini, admitiu que o bloco tem o “dever moral” de prestar assistência a estas pessoas e que são necessárias “medidas imediatas da parte da UE e dos Estados-membros”, sublinhando que “não há soluções mágicas” para o problema e pedindo uma postura comum de todos os que compõem a União. “Acabaram–se as desculpas”, sublinhou.

Este debate tem sido o exemplo por defeito das dificuldades em se alcançar consensos no bloco. Se Itália, França, Espanha ou Malta – mais afectados pelo fluxo migratório movido a guerras civis nas regiões vizinhas – querem soluções cabais para o problema, outros Estados, como a Alemanha e o Reino Unido à cabeça, continuam a promover o desinvestimento nas operações de resgate, defendendo que esta política alimenta a migração clandestina e o tráfico de seres humanos. Mas perante o número crescente de imigrantes mortos no Mediterrâneo, Berlim parece agora estar a alterar a sua posição.

Depois do encontro de ontem, Thomas de Maizière, ministro alemão do Interior, disse que o país está aberto a receber imigrantes que chegam às costas da Grécia e de Itália e que todos os Estados-membros devem abrir as suas portas, definindo que, a partir dos países que são ponto de chegada de migrantes, “deve haver uma distribuição ordenada e justa” dos refugiados por toda a UE. É esperado que na próxima semana esta questão esteja no topo da lista de tópicos a debater no plenário do Parlamento Europeu, em Estrasburgo.