Já a rotulagem de produtos alimentares é miudamente regulada pela União Europeia. Como se tal não bastasse, os 27 Estados-membros não se poupam a esforços em matéria de goldplating quando, ao transpor as Directivas, estendem um avançado regulatório que multiplica por 10 a superfície normativa da roulotte vinda de Bruxelas.
Acima de toda esta floresta rotular encontramos os produtores de vinhos. No tempo antigo, em que os animais falavam, pelo rótulo o vinho tinha nome, às vezes ano, nem sempre grau e, em função do nível de narcisismo, o nome do produtor, muitas vezes apenas a região ou uma morada vaga, sem número de polícia, nem código postal. Referências à capacidade da garrafa só se generalizaram pela Europa na segunda metade do século XX. O mercantilismo de Bordéus, orientado para a venda aos ingleses, trocou o sistema métrico pelo imperial, em múltiplos (os barris de 225 litros) e sub-múltiplos (as garrafas de 75 cl) do galão (4,5 litros). À ditadura da standartização ainda se responde com galhardia no Alentejo, onde alguns produtores usam garrafas de litro, a pedido dos consumidores do meio da manhã que não querem gastar mais do que uma.
Ao domínio inglês seguiu-se a invasão americana, simplificadora e normalizadora. Para dar previsibilidade a um consumidor possidente, mas ignaro, as garrafas teriam de se explicar. O rótulo passou a referir o ano (afastando os vinhos loteados do mercado) e as castas empregues, se possível reduzidas a uma, sendo mais fácil antecipar o que nos dará um vinho monovarietal. Tudo isto foi vertido para o rótulo.
Não satisfeitos com a abundância de informação, alguns produtores avançaram para a retaguarda da garrafa e inauguraram o contra-rótulo. Nele deram largas à sua falta de talento para a escrita, para a poesia, para o desenho, para o marketing e para a informação. Todos? Não: em França resistem e a ausência de contra-rótulo é uma marca de qualidade, correspondendo à versão não escrita da lapidar frase: “Se não sabe porque é que pergunta?”
Em Portugal os contra-rótulos são zona livre de bom-senso, redacções de tema livre, pouso para disparates e tentativas de enganar o consumidor. Mas também há contra-rótulos que, involuntariamente, nos fazem sorrir. Recordo, com gosto, dois, vindos de vinhedos meridionais, em que o produtor quis elevar os feitos viti-vinícolas, colhendo amparo na langue de Molière. Num deles o contra-rótulo, debochado, prometia “élevage sur lit” em vez de “élevage sur lie”. Sendo o objecto de maturação as habituais Trincadeira e Aragonez, não seriam as borras que confeririam muito maior concentração de palato e de nariz. Mas quem, por esta ordem, bebeu o vinho e leu o contra-rótulo, não deixou de sonhar com uma maturação na cama.
Ainda mais a sul, e por castas brancas em chão de areia, o contra-rótulo anuncia a maridagem do vinho com a “haute cousine”, ciente da indisponibilidade da “haute cuisine”. Seguindo o mesmo método (primum bibere, deinde legere) sonhamos com a “alta prima”, no século pregresso, a “prima altamente”.
Muito do que se lê nos contra-rótulos pode ter sido escrito sub vino. Descontada a hilariedade, nada se perderia se as respectivas proclamações ficassem sub rosa. Ou como fazem os produtores franceses afamados, prescindindo do contra-rótulo. Que sais-je?







