Há uma velha história de um diretor de marketing americano, um guru dos idos anos 60 do século passado, que previu o fim – fatal e definitivo – dos ovos e do respetivo desaparecimento das prateleiras dos supermercados. As razões apresentadas pelo astuto perito eram claras: os ovos não se aguentam sozinhos, têm todos o mesmo aspeto e não se distinguem uns dos outros, partem-se com demasiada facilidade e estragam-se depressa – o que destruía qualquer hipótese de lucro num mundo cada vez mais rápido e inclemente. Os ovos tinham os dias contados como produto comercializável e ponto final.
E foi assim que, um dia, em 2007, depois da despudorada Ongoing abocanhar o “Diário Económico” – um belo exemplo de viver e morrer a crédito – um grupo de jornalistas que queria fazer mais, muito mais, decidiu avançar para uma omeleta do assunto e negar todas as evidências. A ideia era simples: voltar ao que julgávamos ser o único caminho capaz de fugir ao destino cruel da informação feita a partir dos jornais impressos. Foi basicamente assim que nasceu o “i” – um jornal imaginado no preciso instante em que muitos irmãos já sucumbiam nos Estados Unidos e as perspectivas eram pior do que sombrias.
Claro, as nossas ideias iniciais para o que íamos fazer eram péssimas. Eu sugeri que fizéssemos um diário na linha do “Público”, embora inspirado num periódico grego que se estreara um ano antes, o Eleftheros Typos. Felizmente, as minhas certezas são passageiras e as reuniões incessantes que fizemos para encontrar o melhor modelo acabaram por dar um belo fruto – iria ser um jornal que evitaria o pecado capital de ir atrás de todas as ambulâncias informativas do dia, sendo capaz de identificar, no meio da confusão, quatro ou cinco assuntos relevantes e dar-lhes profundidade e densidade jornalística.
Ou seja, queríamos fazer quatro ou cinco destaques informativos por dia — não apenas um como o “Público” do Vicente Jorge Silva – ancorados na política nacional e internacional, na economia e na sociedade. Seria, portanto, preciso peneirar intensamente a atualidade, ter feroz sentido crítico e revelar, de forma consistente, a inteligência necessária para encontrar os veios informativos que fazem andar o mundo.
Não queríamos noticiar coisas giras e polémicas. Polémica era, aliás, palavra proibida.
Exigíamos (garimpávamos por) assuntos com alcance que ajudassem a fortalecer o debate público e o sentido de exigência de quem nos lesse. Numa edição poderia até não haver política partidária, já que a espuma dos dias teria de ser evitada como a peste, apesar de ela facilitar muito a vida. Resistir a esta magna tentação diária é um exercício espinhoso e ingrato. Espinhoso porque nem sempre fomos capazes – cedemos em vários momentos. Ingrato porque cometemos várias vezes o erro de rejeitar factos e acontecimentos que mereciam mais atenção jornalística.
Para reduzir o risco capital de passarmos ao lado da atualidade, criámos uma secção, que abria o jornal, onde resumíamos em pequenas notícias o dia anterior e onde cabiam todos os temas. A ideia era simples: não faríamos breves, embora os textos fossem curtos e se parecessem breves, faríamos textos sempre de alta intensidade e muito bem escritos, com citações curtas e boas, recorrendo a gráficos, ilustrações e formas muito criativas de explicar o que acontecera para agilizar a leitura.
Para levar a carta a Garcia, os jornalistas teriam de pôr de parte a vaidade: assinar uma breve (com iniciais) não tem o mesmo impacto de assinar um texto longo, mas a informação das nossas super-breves teria de ser tratada com a mesmo – e até mais – atenção e esmero. Escrever curto é muito mais difícil, especialmente para um povo tão palavroso como o nosso, o que tornava o desafio diário realmente difícil. Desporto e cultura teriam secções separadas e fixas, embora obedecendo ao mesmo sentido crítico e nível de exigência.
Não conseguimos chegar lá. Na verdade, o “i” original esfumou-se menos de um ano depois do lançamento, esmagado por José Sócrates e os seus indefectíveis. Ainda hoje me espanto com a decisão do Grupo Lena escolher esta equipa editorial para fazer o “i”, apesar do nosso perfil não ser o de cortesãos do poder – fomos nós, aliás, que noticiamos a intenção de Sócrates comprar (e controlar) o grupo da TVI, informação que valeu o princípio do nosso fim.
Teríamos precisado de pelo menos mais um ano para chegarmos mais perto da nossa ideia original — ganhámos prémios internacionais, demos conferências fora do país sobre o nosso modelo, mas internamente ficámos sem apoio em menos de 12 meses. Uma lástima muito portuguesa; ainda assim, a possibilidade de termos feito o “i” foi extraordinária. O caminho que aquela redação fez – uma equipa de jornalistas de cabeça aberta, com vontade de aprender, sempre curiosos, disponíveis e corajosos – compensou inteiramente, largamente, o esforço individual e coletivo.
Falta apenas dizer que o “i” foi pensado para mudar de pele com facilidade: de diário poderia passar a bi-semanário ou semanário, poderia matar a edição em papel e ser digital, nativo-digital, sem qualquer drama, porque é esse o seu ADN. Pelo que sei, passará agora a suplemento do “SOL”, o que me parece esplêndido, porque só um jornal flexível e disponível consegue ter tantas vidas como um gato.
Ex-diretor-adjunto







