Luís Oliveira. Uma revolução com sotaque estrangeiro

Luís Oliveira. Uma revolução com sotaque estrangeiro


1940-2025. O editor da Antígona morreu de paragem cardíaca aos 84 anos.


Tinha um irritante sorriso de bazófia e aquela distinta sobranceria de um patrão, falava do seu percurso e de si próprio regurgitando há décadas a mesma ladainha, empregando um tom de lenda, e essa narração acabou replicada, em parte pelo menos, nos necrológios, o que sinaliza como ele soube ler a tendência para reduzir tudo a uma caderneta de cromos, tendo desde muito cedo tratado de fomentar o panegírico em redor da editora e do seu papel, esse canto tão fantástico porque fúnebre, enquanto a casa se governava e o negócio se robustecia, e ele encarnava aquele género de heróis por conta de outrem que sempre povoaram o campo da edição.

O patrão da Antígona
Assim, se lhe deve ser reconhecido o inegável mérito de ter criado um catálogo impecável, que defendia um tribunal às avessas, e a subsistência de um modo implacável da crítica integrando os contributos de anarquistas, comunistas libertários, situacionistas, erguendo uma galeria de autores em que o todo era manifestamente mais poderoso do que a mera soma das partes, por outro lado também se lhe pode apontar uma espécie de desencorajamento dos autores empenhados em fazer esta mesma crítica anticapitalista entre nós, sendo que nos últimos anos a própria revolução entre nós parece ter sotaque estrangeiro, parece ser uma ideia que só poderia vingar se fosse importada. Podemos reconhecer a Luís Oliveira o ter criado as condições para que um conjunto de colaboradores e leitores – por vezes sonegados ou secundarizados por ele, sempre que achava necessário açambarcar os créditos e ressalvar que a Antígona era ele mesmo – pudessem compor lentamente e de forma muitíssimo coerente uma biblioteca com cerca de quatro centenas de títulos que se tornou um formidável desafio à civilização da alienação, por outro lado, ele mesmo desdenhou em tantas das suas intervenções os elementos mais radicais e emancipadores daquelas propostas, e enquanto as escolhas se mostravam bastante rendosas, não hesitava em recorrer aos tais «silogismos bolorentos» sempre que precisava de justificar a sua visão bastante conservadora e pragmática da empresa onde ele cumpria alegremente o papel do patrão. Mesmo se tantas vezes exibia uma confiança meio delirante, reclamando para si a aura e a distinção dos editores que dissipavam fortunas para dar expressão às vozes e às artes abomináveis, confundia duas esferas, duas formas de orgulho antagónicas, o do homem que triunfou enquanto a proliferação dos livros reduzia a sua esfera de irradiação, e a do tal editor que «escolheu os caminhos selvagens e abandonados pelos senhores do saber social dominante e que conseguiu aguentar-se no tempo» (Jorge Valadas).

Um náufrago que resiste na sua ilha
Acontece que esse triunfo significou em grande medida uma adaptação aos apetites do mercado, nomeadamente uma ânsia por oferecer o tipo de mercadoria que consubstancia uma forma ritual e gestual que passa por envergar o protesto e os sinais de repúdio pelo capitalismo, sempre enquanto símbolo, sem pôr seja o que for em causa, nem corroer as estruturas de coação. Na verdade, este cinismo apenas as reforça, dando a possibilidade a alguns de se ludibriarem, continuando a consumir de forma impune, e escolhendo estrategicamente quando lhes convém assumir uma distância irónica. De resto, como demonstraram alguns autores, esta estrutura de repúdio enobrece o próprio capitalismo, e não deixa de ser curioso que a Antígona seja um dos principais exemplos de uma editora que beneficiou com a fusão e concentração realizada pelos grandes grupos editoriais, pois enquanto aquelas agrupavam pequenas e médias editoras, convertendo-as em chancelas, e absorvendo os catálogos, para logo promoverem uma gestão centralizada, a editora de Luís Oliveira soube valer-se do definhamento da diversidade das apostas editoriais e até de uma forma de proliferação do livro que ajudou à perda da sua irradiação. Isto permitiu-lhe surgir isolada, com o seu editor a imaginar-se o nosso Crusoé, formulando essa consciência de um náufrago que resiste na sua ilha, entregando-se a acessos de megalomania em que reclamava para si o mérito das obras que lhe chegam de fora e que ele traduz num contínuo sermão aos peixes, imaginando que sem os ter descoberto e publicado, os autores nem existiriam. No caso de Luís Oliveira, a distorção ainda é mais grotesca, uma vez que do inegável prestígio que alcançou o seu catálogo, um dos aspetos mais assinaláveis é a quase total ausência de verdadeiras descobertas, não editando propriamente os textos, mas limitando-se a fazer uma curadoria a partir das apostas feitas lá fora. Mesmo assim, gostava de se imaginar à frente de um quartel-mestre e adega de ratos, serpes e escaravelhos, uma forma de inversão folclórica com vista a exaltar aquele pequeno coral de espíritos indómitos ocupados a compendiar tantos dos mais ferozes discursos de crítica ao quadro de impostura e opressão a que nos vemos submetidos.

O lugar no mundo das artes
Enquanto o setor se ressentia com aquele efeito de esmagamento e abolição do ecossistema editorial, a Antígona reforçava a prosápia, e impunha a sua encenação moral, num zumbido que às tantas operava mais como «um ruído de fundo carnavalesco». Com insuperável jactância, os materiais promocionais desta reclamavam títulos entretanto exaustos como o da mais insolente editora, refratária, sediciosa, subversiva, transgressora, uma força de resistência, uma conspiração permanente contra o mundo… E isto a um ponto tal em que o projeto de crítica parecia cair para segundo plano, enquanto ganhava relevo um programa de auto-celebração, que se estendia aos próprios leitores, os quais, enquanto se forneciam de textos incendiários que deveriam reduzir a cinzas o quadro miserando da mercantilização e o enredo espetacular, ali participavam num cerimonial em que a aquisição dos livros passava por ir buscar a hóstia maldita, numa liturgia que invertia os signos apenas para reproduzir uma outra ficção beatífica. E aquele discurso absurdamente enfatuado e que se fazia passar por insolência, não significava outra coisa senão uma reconvenção do fetichismo da mercadoria. Leia-se a título de exemplo uma dessas proclamações destacadas em letras garrafais nos panfletos da editora: «A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz respeitável da edição. Se por infelicidade um panteão lhe oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do dia da peste. Da peste; sem dúvida!».