A falta de atenção e de antecipação aos sinais que emanam da sociedade têm feito a desgraça política de muita gente, mas também do país. São muitos os exemplos de falta de sintonia da perceção da classe política e dos media com o pensamento da população e a realidade dos factos. Há demasiada gente, com relevância política, mediática, económica e social, a viver em bolhas, configuradas sem nexo com as ideias, as perceções e as realidades dos portugueses. O problema é que o desfasamento não se projeta apenas no plano dos comentários e das declarações, ele macula de forma impressiva a construção das respostas ou a falta delas, originando resultados não desejáveis ou fenómenos que sobressaltam as consciências e os equilíbrios existentes. É o que acontece com o populismo, as derivas justicialistas do sistema, a imigração, a mera gestão das circunstâncias pessoais em detrimento do interesse geral e muitas outras expressões de perda de foco e de sintonia que lesam a imagem das instituições e fragilizam o compromisso com pilares fundamentais da vida em comunidade.
Ao fim de mais de 50 anos de vivência democrática, alguns ainda não perceberam que há propostas ideológicas com a configuração de sempre que já não conseguem responder aos problemas atuais das sociedades complexas, há convicções, perspetivas e até circunstâncias pessoais que não correspondem minimamente às expetativas de prossecução do bem comum e há evidentes mudanças de perfil nas militâncias dos partidos, nos comportamentos individuais dos cidadãos e no pulsar das comunidades que têm relevância nas opções cívicas e eleitorais.
Para além de especificidades muito próprias de um território gerido em décadas apenas por uma força político-partidária com as projeções autofágicas que geram nas oposições, os resultados eleitorais na Região Autónoma da Madeira sublinham a centralidade da valorização da capacidade de quem está a concretizar, ainda que de forma deficitária, sobre a proposta alternativa em querer fazer melhor. Não é o “roubo, mas faço”, que terá sido usado com êxito numa campanha eleitoral brasileira, mas anda lá perto. É essa valorização do “fazer” sobre tudo o resto que terá levado ainda à irrelevância eleitoral das suspeitas e processos judiciais que impendem sobre Miguel Albuquerque, diversos membros do governo regional e dirigentes do PSD. Na ausência de um sentimento claro de saturação com o exercício da governação e de vontade substancial de mudança, os eleitores preferiram o certo, mesmo que poucochinho, pelo que transportava algum grau de incerteza ou de inconsistência. E tudo num quadro em que o debate político esteve muito centrado nos problemas judiciais, de juízo ético e de risco de perda de condições para o exercício governativo pelo anterior e futuro líder do governo regional. A ineficácia eleitoral do foco escolhido permite extrapolar os evidentes riscos para similar exercício no plano nacional com os problemas éticos, de chico-espertice e de eventual ilegalidade do primeiro-ministro Luís Montenegro no advento da sua aventura empresarial mantida indiretamente durante o exercício de funções governativas. Persistir em dar relevância central às falhas dessa dimensão ética, não detetadas por uma ineficiente Entidade para a Transparência e sem qualquer ação judicial que já teria acometido qualquer outro cidadão sem as nuances de proteção do primeiro-ministro, pode ser quase irrelevante para a concretização de objetivos eleitorais, como se viu pela Madeira. Por muito que nos custe, a ética não é valorizada em Portugal e pelos portugueses. Não conta. Não faz parte do filtro das escolhas políticas, sobretudo se houver uns tostões no bolso suficientes para a sobrevivência ou para a perceção de que há outros em pior situação. São muitos os casos em que um exercício de ética republicana não tem nenhuma relevância além do afago da consciência individual, quando deveria ser promovido e valorizado com similar projeção cívica e mediática com que são as falhas ou os quadros de confusão de conceitos em que tudo serve para preencher tempo de emissão, vender jornais ou gerar armas de arremesso político e de conversa nas redes sociais. Com demasiados telhados de vidros em todos os quadrantes, até nos que tendo a missão de informar não hesitam em exercitar pretensas autoridades morais, o foco do debate político eleitoral deve mesmo estar na valorização da capacidade dos protagonistas como agentes de concretização, com uma visão para o país, das equipas a sufrágio e das propostas concretas para responder aos problemas dos portugueses e dos territórios. Desde logo, aos que precisam de respostas no quadro do interesse geral, antes das modernices, dos rasgos ideológicos mirabolantes e do eventual afago de nichos eleitorais de agendas pessoais. As pessoas estão cansadas de conversa de quem não fez podendo ter feito, mas também de quem só pretende estar do lado da contestação, sem contributo para a existência de soluções justas, sustentáveis e exequíveis. É preciso quem mande, quem faça e quem explique o porquê de aquilo estar a ser feito. Não perceber o que se passou na Madeira e o que, por agora, está a acontecer nas projeções eleitorais das eleições presidenciais será sempre chover no molhado. E diz o povo, com propriedade, quem anda à chuva molha-se. Nem umbigo, nem enleio discursivo nos problemas éticos-judiciais, o foco tem mesmo de ser a competência dos protagonistas para fazer, para concretizar as respostas que não foram concretizadas de 2011 a 2015 ou de 2015 a 2024. Tudo o resto, como se viu pela Madeira, será pouco mais que espuma, anima as tribos partidárias e os media, mas não mobiliza o eleitorado cansado de espera. Também aqui é preciso compromisso para a qualificação dos protagonistas, das narrativas, das propostas e do debate político, mas esse não é um desafio apenas dos partidos. Os media e os cidadãos também têm um papel essencial, na exigência que colocam e nos filtros que utilizam para separar o trigo do joio. Quando tudo falhar, resta o tribalismo político, mais perto da selva do que da vida em comunidade.
NOTAS FINAIS
A BOLA DE MARCELO. Recuperada a centralidade presidencial, voltámos a ter o ridículo comentário de Marcelo Rebelo de Sousa no final do jogo Portugal-Dinamarca, com cenário de flash interview. O homem não se toca mesmo.
AI A POLÍTICA E OS NEGÓCIOS. A incursão de Musk na administração de Trump está a ser um desastre para a Tesla. Só mesmo o longo prazo pode trazer ganhos.
PROPAGANDA DE GESTÃO. Atropelado pela antecipação do calendário eleitoral, o governo comporta-se como se não estivesse em gestão, mas está. Pode fazer algumas coisas, mas sem alarido, pela calada, como já tem feito.