No cinema e na literatura, é incontável o número de figuras de peso que recorreram à psicanálise. Woody Allen, Philip Roth, e até a icónica série sobre a máfia italiana, Sopranos, são alguns dos exemplos lapidares de como a psicanálise acaba por ser fundamental no sucesso de alguém que é visto como uma inspiração por tantos, mesmo que com diferenças evidentes entre o uso que as várias personalidades fizeram da ciência criada por Sigmund Freud nos últimos anos do século XIX.
Uma obra baseada na psicanálise
Woody Allen é um nome incontornável da sétima arte contemporânea, com uma carreira de mais de seis décadas de sucessos. O cineasta que nos brindou com obras de excelência como Bananas (1971), Annie Hall(1977),Manhattan(1979) ou Stardust Memories(1980), foi dos que nunca escondeu a importância que a psicanálise representou não só na sua vida, mas principalmente na sua obra.
Em 1971, Allen deu o seu testemunho sobre a matéria no Dick Cavett Show, um dos mais conhecidos programas americanos da época. O ator revelou que estava há 13 anos imerso na “psicanálise freudiana clássica”, oito dos quais esteve “no sofá” e durante cinco foi-lhe permitido sentar-se e “ficar de frente para ele [psicanalista]”. “Isso ajudou-me, penso eu”, disse, ao que Cavett lança uma questão premente de quem está sujeito a este tipo de experiência: “Quando é que decide ‘acabou’”? “Não sei se alguma vez se acaba realmente, mas sei que certas caraterísticas minhas são diferentes do que eram quando comecei a análise”, respondeu o ícone do cinema americano.
Mas, e como não poderia deixar de ser, Woody Allen, bem ao seu estilo critico-cómico, brincou com a situação. “Acho que eles não estão interessados em mim. Quando estou lá, a falar dos meus problemas e isso, penso sempre que o médico me está a ouvir mas não se preocupa muito e que está a pensar quando é que pode ir para o seu barco à vela, quando é que as sessões vão acabar e se conheço muitas raparigas boas, porque estou no mundo do espetáculo, e se lhe posso arranjar uma e esse tipo de coisas. Mas não, não sinto que haja qualquer interesse real nos meus problemas”. “Tento não lhe dar qualquer informação exata sobre mim”, acrescentou.
Mas mais do que uma ajuda a nível pessoal, a sua obra é a mais “consistente” em termos psicanalíticos, escreveu o Museu Freud de Londres. “Ele é o principal realizador freudiano, tendo passado várias décadas em análise, pelo que seria negligente da nossa parte omiti-lo. Fantasias edipianas, impulsos agressivos, ansiedade de morte, perversidade polimorfa e hipocondria figuraram largamente no seu repertório”, diz o Museu que carrega o nome do pai da psicanálise. “Muitos dos filmes de Allen parecem assentar na estrutura neurótica”, continua a mesma peça, “girando em torno de crises existenciais, autossabotagem, obsessão por pequenos pormenores e a compulsão para repetir padrões de vida negativos. Muitas vezes, a pessoa neurótica é referida como ‘retraída’, ou aparece como uma figura inibida que se retira da vida, adia o compromisso, duvida das palavras que usa e teme o castigo. Como iremos descobrir, as personagens mais icónicas de Woody Allen parecem ser neuróticas por excelência, presos no espaço ambivalente entre o amor e a morte, sempre preocupados com a questão: ‘Qual é o sentido da vida?’”.
O tema pode ser acompanhado com mais profundidade num documentário de quase seis horas intitulado “Woody Allen – The Cinema of Neurosis” (Woody Allen – O Cinema da Neurose, em português), levado a cabo pela fundação já mencionada.
“A vida é longa e a arte é mais curta”
Quando falamos em romancistas americanos notáveis, o nome de Philip Roth chega à conversa de forma natural. Considerado um dos maiores no seu género literário, amado por muitos e criticado por outros, Roth deve também muito à psicanálise na sua obra, e o próprio deixou isso claro numa entrevista à The Paris Review em 1984.
Hermione Lee, o entrevistador, colocou Philip Roth perante a seguinte questão: “Qual é a relação entre a sua experiência da psicanálise e a utilização da psicanálise como estratagema literário?”. A resposta, dada a sua profundidade e clareza, merece ser citada na íntegra:
“Se não tivesse sido analisado, não teria escrito Portnoy’s Complaintcomo o escrevi, ou My Life as a Man como o escrevi, nem The Breast se assemelharia a si próprio. Nem eu me assemelharia a mim próprio. A experiência da psicanálise foi provavelmente mais útil para mim como escritor do que como neurótico, embora possa haver aí uma falsa distinção. É uma experiência que partilhei com dezenas de milhares de pessoas perplexas, e tudo o que é poderoso no domínio privado, que une um escritor à sua geração, à sua classe, ao seu momento, é tremendamente importante para ele, desde que depois possa separar-se o suficiente para examinar a experiência objetivamente, imaginativamente, na clínica da escrita. Temos de ser capazes de nos tornarmos o médico do nosso médico, nem que seja apenas para escrevermos sobre a condição de paciente, que foi, certamente em parte, um tema de My Life as a Man. A razão pela qual a condição de paciente me interessava – e já em Letting Go, escrito quatro ou cinco anos antes da minha própria análise – era o facto de tantos contemporâneos esclarecidos terem passado a aceitar a visão de si próprios como pacientes, e as ideias de doença psíquica, cura e recuperação. Está a perguntar-me sobre a relação entre a arte e a vida? É como a relação entre as cerca de oitocentas horas que são necessárias para ser psicanalisado e as cerca de oito horas que seriam necessárias para ler o Portnoy´s Complaintem voz alta. A vida é longa e a arte é mais curta”.
“A Psicologia dos Sopranos”
São poucas as pessoas que não conhecem a série The Sopranos, cujo primeiro episódio foi para o ar no final da década de 1990. Mesmo quem não assistiu, reconhece, pelo menos, a personagem Tony, interpretada pelo ator James Gandolfini. A obra é um marco cinematográfico contemporâneo, e a psicologia, bem como a psicanálise, são fundamentais para o desenvolvimento do enredo de um chefe da máfia de Nova Jérsia que desenvolve uma séria depressão. Existe até um livro intitulado “The Psychology of the Sopranos: Love, Death, Desire and Betrayal in America’s Favorite Gangster Family” (A psicologia dos Sopranos: Amor, Morte, Desejo e Traição na Família de Gangsters Favorita da América, traduzindo à letra), dedicado à análise desta matéria da autoria de Glenn O. Gabbard.
As cenas em que Tony Soprano frequenta a terapeuta Jennifer Melfi são também elas icónicas e refletem as dificuldades que surgem em tais ocasiões. Bernard Apfelbaum, no seu ensaio “The Case of Tony Soprano and Dr. Melfi” (O Caso de Tony Soprano e da Dra. Melfi, em português), menciona o episódio em que o Soprano sai com ira do consultório após ser confrontado com a acusação de Melfi sobre os sentimentos negativos que o chefe da máfia sente para com a sua própria mãe. “A reação de Tony significa, não que ele esteja a ser um paciente difícil, mas que o terapeuta tropeçou em alguma coisa e precisa de recuar e descobrir o que aconteceu. O meu palpite é que o que o Tony ouviu foi que estava a ser chamado à atenção: que não devia odiar a mãe; sente-se acusado de ter sentimentos negativos em relação à mãe”. “Vendo as coisas desta forma”, continua Apfelbaum, “sentir-se-ia muito menos condescendente com o facto de ele estar tão magoado. Longe de ser incapaz de ver o terapeuta como um colaborador, ele está a reagir de uma forma compreensível ao sentir-se incompreendido, julgado, desrespeitado”.
A relação dos Sopranos com a psicanálise é tão profunda que, em 2001, a Associação Americana de Psicanálise atribuiu um prémio aos produtores da série pela “representação artística da psicanálise e da psicoterapia psicanalítica” e à atriz Lorraine Bacco, que interpreta a personagem de Dra. Melfi, por ter representado “a psicanalista mais credível de sempre a aparecer no cinema ou na televisão”.
Assim, podemos chegar à conclusão que a psicanálise está, há muito tempo, presente nas obras que vemos, lemos ou ouvimos, mesmo que seja de forma subtil.