Wang Bing. O fim absoluto do mundo

Wang Bing. O fim absoluto do mundo


. Durante 6 anos, entre 2014 e 2019, Wang Bing (o maior dos realizadores chineses) filmou os jovens trabalhadores dos ateliers têxteis de Zhili, na República Popular da China. Existem cerca de 18.000 ateliers privados em Zhili, e neles trabalham cerca de 300.000 rapazes e raparigas, que produzem roupa infantil para o mercado interno e internacional.…


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Durante 6 anos, entre 2014 e 2019, Wang Bing (o maior dos realizadores chineses) filmou os jovens trabalhadores dos ateliers têxteis de Zhili, na República Popular da China. Existem cerca de 18.000 ateliers privados em Zhili, e neles trabalham cerca de 300.000 rapazes e raparigas, que produzem roupa infantil para o mercado interno e internacional. Os jovens vêm de longe, das províncias rurais e das montanhas, e muitos acabam por regressar, devidamente enganados e explorados, para casarem e cumprirem os ciclos da sua vida. O resultado desta filmagem deu origem às três partes de “Youth”: “Spring”, “Hard Times” e “Homecoming”. Os três filmes chegam em Maio a Portugal.

A câmara de Wang Bing é uma arma de longo alcance. O tiro é afinado por uma mira de precisão, e o disparo (tão silencioso) destrói as cartilagens e o osso do nosso tempo. Não existe música nem poesia a dourar os estalos do corpo que assim acaba, mas apenas o ruído incessante das máquinas de costura de Zhili, que simbolizam a pressa e o fim do mundo. Não tinha de ser assim; nada tinha de ser assim.

Quando, no final dos anos 90, Wang Bing filmou o colapso das fábricas de fundição e metalurgia de Tiexi (Tie Xi Qu: West of the Tracks), esperou-se que a economia socialista cedesse o seu lugar ao mercado livre e ao enriquecimento da China. Assim foi: Youth é a crónica das suas vítimas e nós os seus sucessores, encafuados em divisões escurecidas a coser os trajes invisíveis dos novos imperadores.

Os nomes dos filmes (românticos, como os nomes dos filmes chineses) não revelam senão uma parte daquilo a que vamos assistir. Se Spring representa a entrada na maturidade, com o que isso tem de corte e seus ritos, de tensão e desejo no espaço de trabalho, cedo vem o inverno desolar e monetizar estas interações, dando origem a uma versão muito própria da luta de classes. Em Hard Times, não se destaca um único homem forte para liderar os good times que o mito diz que lhes sucedem. Por fim, não é a casa que se regressa em Homecoming. Na verdade, é como se não mais se regressasse.

O projeto Youth demora quase 10 horas, e em nenhum momento vemos a luz num país perdido. Deram patacas aos escravos e chamaram-nos de trabalhadores. Os direitos dos trabalhadores são concedidos à justa, no limite da implosão – e na China menos. Quem desejar muito, pode encontrar sobras de esperança nos ateliers da China (ou em qualquer lugar da terra), mas a verdade impõe-se.

Um rapaz olha para a rapariga à sua frente enquanto cose umas calças, e convence-se de que a ama e logo fere um dedo; a rapariga olha-o de volta e sorri e então ele canta-lhe uma canção para a fazer corar; é o amor que cresce no meio da podridão… encontra sempre forma de crescer; os dois juntos poderão discutir com o patrão o preço de cada peça; empurram-se e dão as mãos e não voltaremos a vê-los.

Esperança?

Depois de uma longa jornada, três rapazes cansados discutem o conceito de mulher ideal. Dividem os seus tempos livres entre o pop rock britânico, as lãs e o engate. Que pena que não exista um comboio direto para Ocidente. Entre risos nervosos, um deles conta as agressões que sofreu às mãos da People’s Police. Por cada bastonada, acende um cigarro: “De que serve o dinheiro sem direitos?”.

Mas que esperança?

É dia de casamento e os foliões da aldeia lançam foguetes baratos. São dois trabalhadores de Zhili que vieram a casa festejar junto da família. Nas estradas pantanosas, o noivo carrega a noiva, e todas as crianças seguem atrás batendo-lhes com canas, como se fossem uma besta e a sua carga. Ninguém ri; é como se estivesse escrito. No fim da festa, voltam a Zhili para cumprir os seus longos anos de sentença.

Não existe esperança.

Atrás de toda esta gente anda Wang Bing apontando a sua câmara, cruzando portas, dormindo nas camaratas, comendo com os operários. Durante milhares de horas, ano após ano, como se valesse a pena contar as suas histórias. Esta é a história de como tudo acabou, de como a colossal youth de outrora foi amordaçada e transformada em desperdício. Cada um destes jovens é uma peça de um imenso tanque, e não resta um bravo para o enfrentar – enquanto segura uma espada ou uma adaga, um escudo ou uma fisga, ou os sacos com as compras do dia, arriscando a fúria do PCC. Não cabe a Wang Bing ser o valente, mas antes o seu fotógrafo, que poderia cristalizar o momento do protesto e espalhar as imagens pelo mundo. As fotografias constroem o epicentro das revoluções.

Não é a primeira vez que alguém escreve estas palavras: fomos vencidos. Também eu fui vencido, e comigo os que me rodeiam, que somos emuladores dos jovens chineses e nos vendemos à peça, e encontramos em Youth o espelho amaldiçoado que rejeitamos. “Não sou eu; não posso ser eu a figura que o espelho reflecte; a imagem é a de um porco amestrado que permite que o chicoteiem; não… eu ando direito, tenho o pescoço fino e a minha voz tem eco; nasci livre, que é como também vou morrer; o dinheiro não me comanda… mas porque… porque aceitam eles trocar-se por tão pouco?”.

Provavelmente, Youth é o filme mais ambicioso e mais importante da década, nos seus planos longos, quebrados e trementes, cheios de sombras e ciscos, e assombrados pela respiração de Wang Bing. Quando o século XXI começou – começou com No Quarto da Vanda, o filme de Pedro Costa – descobrimos que da miséria à dignidade vai um olhar de distância, e que os vencidos (os que escolheram mal, os que fizeram errado, os desafortunados, os mal-nascidos, aqueles a quem a vida não deu tréguas, convencendo-os de que o destino existe, e com ele os deuses raivosos e os santos milagreiros, que sempre os têm na mira) em nada se distinguem dos vencedores… partilhamos carne e condição. Agora que passaram 25 anos, Youth mostra-nos que dessa igualdade não nasce a fé nem a confiança, e que ela é um mero bálsamo fingindo engrandecer umas almas e encolher as outras, para simular justiça.

Enquanto os deuses fazem a guerra, inventam conceitos e dão ordens, mantendo a terra no fio da navalha, as máquinas de costura trabalham sem descanso, e por detrás de cada uma delas senta-se um homem inteiro. Sabe que está a ser filmado. No entanto, tenta fazer o seu trabalho como se não estivesse, e pensa “que esgares faria eu se não me sentasse diante da câmara?”, e imita os seus próprios gestos, sentindo-se o intérprete de uma peça de teatro. Que bonito, ser-se levado à consciência de si mesmo. “É assim que me movo? O que gosto de fazer quando estou sozinho, serei capaz de sorrir sem razão, comando eu estas duas mãos gretadas, ainda sei quem sou quando me concentro na minha tarefa, poderia transformar-me noutra pessoa e assim espreitar-me do outro lado da janela, e o que pensaria se visse este espetro, o espetro de mim, ao cabo da vigésima quinta hora?”.

O último plano de Youth é uma bomba; o filme acaba como começa. Um jovem, que hoje já não o é, tece. O que fez depois? Quem é este homem? Quem vestiu? Quanto importa saber? O cinema, dividido entre o que mostra e o que esconde, não vem trazer respostas. Talvez se cada um de nós escutar o vento, e partilhar com os outros o que descobriu… talvez… talvez possamos quebrar as cadeias.

A 3.ª parte de Youth (Homecoming) estreou em 2024, na 81.ª edição do Festival de Veneza. Depois de ser anunciado como candidato ao Leão de Ouro, os perfis online de Wang Bing foram eliminados da web chinesa. Neste momento, os filmes de Wang Bing estão sujeitos a censura na China. No entanto, é como se o vírus tivesse sido libertado; quem viu estes filmes é seu portador e guardião.