Erros, pecados e pecadilhos


Um erro, um pecadilho, ainda que não constitua crime doloso, não deixa de ser o que é; não deixa de revelar, pelo menos, a pouca exigência ou a censurável imprevidência de quem o cometeu.


  1. No momento em que escrevo estas palavras, chove. Chove como há muito me não lembro de chover.

É confortável estar em casa, numa casa razoavelmente aquecida, e ver, lá fora, a chuva a cair.

Sei que a chuva é necessária e isso alivia-me a consciência, confortável que me sinto, de não ter de pensar, primeiro, nos que são obrigados a viver em casas desaconchegadas, frias, húmidas e superlotadas, pois não têm dinheiro para mais.

E, no entanto, esses podem, igualmente, estar a pensar o mesmo que eu, quando, olhando das suas janelas pequenas para rua transformada em rio, se lembram dos que, sem abrigo, procuram um lugar menos molhado para passarem a noite.

  1. Na televisão, passa o debate parlamentar que ocorre na Assembleia da República, em torno de uma moção de confiança proposta pelo governo e em que os nossos representantes – todos, ou quase – parecem interpretar com dramatismo uma peça há muito ensaiada e sem necessidade de ponto.

O que se discute pode parecer até relevante, caso nos abstraiamos do problema dos que não têm casa nem expectativas de a vir a ter, nos esqueçamos daqueles, muitos, para quem o salário mensal chega quase só até metade do mês, dos que, imigrantes, fazem o que podem para sobreviver e, mesmo assim, são insultados pelos filhos dos que emigraram anos antes, como eles.

Lá fora chove e isso é bom para a agricultura e para corrigir a seca que subsiste, há anos, no Sul, sem que os responsáveis tenham, entretanto, procurado, sequer, ter uma solução séria e perene para contrariar os seus efeitos e malefícios.

Na Assembleia da República discute-se já- noto agora – se o líder do governo é suficientemente confiável para continuar a desempenhar o seu cargo e se   o dirigente do principal partido da oposição tem as aptidões suficientes para, caso haja eleições, o substituir.

  1. Mas, com um olho na chuva e outro no ecrã, cogito espantado: substituir para quê, é que deveria ser a questão que os portugueses deviam colocar, primeiro a si mesmos, e depois aos candidatos à governação.

Saber quais são as políticas a que, independentemente de quem estiver circunstancialmente a governar, teremos na saúde, na habitação, nos salários, nas pensões, na educação, na cultura, nas infraestruturas.

E, todavia, não o fazem, nada lhes perguntam por, no fundo, saberem já a resposta: 1X2 é o resultado habitual da aposta em tais candidatos.

  1. Mas, meio adormecido e já sonhador, noto, ainda, que desconhecemos, também, a razão por que, fora das balizas bem delimitadas e guardadas por aqueles dois players, não se avança com uma proposta viável, e sobretudo visível, que mostre aos portugueses o que poderá ser a primeira parede de uma nova casa comum. Uma casa em que a grande maioria deles possa viver sem que as suas diferenças se tornem insuportáveis.

Uma casa comum, que, não sendo ainda o edifício pronto, onde caiba uma família perfeita – contradições sempre existem, até nas famílias mais unidas – seja, todavia, capaz de envolver uma parte significativa dos que nela hão-de viver a aventura assumidamente feliz da sua construção.

Tal parede, que se quer e pode erguer já hoje, é mais do que o conjunto das peças isoladas que a hão-de compor e que, com justiça, se vão separadamente, exigindo todos os dias, mesmo que muitos dos que, com coragem, as reclamam não saibam muito bem como juntá-las e com que fim.

Por si sós, isoladas umas das outras, tais peças não dão uma ideia do que possa ser a parede rebocada de novo e, menos ainda, da casa que, não hoje, mas seguramente amanhã, estará ao alcance da maioria construir.

E, no entanto, é já com a imagem dessa casa inventada, sonhada, desenhada e com as fundações cavadas que os portugueses poderão começar a querer e a ter a ideia do que possa vir a ser uma cidade nova.

Uma cidade mais amável com os seus habitantes, mais acolhedora para os que, já velhos, a construíram, mais bela e mais ecológica para os filhos e netos dos que nela já habitam; enfim, mais conforme com os êxitos civilizacionais, tecnológicos e culturais já conseguidos pelo homem até este quarto do Século XXI.

  1. Atento, de novo, miro, pelo canto do olho, o que se mostra no ecrã, acordado que fui por um discurso mais audível e empolgado.

Nas bancadas continuam os que mandam, e os que querem mandar, a discorrer em torno de peripécias de um espetáculo com entrada reservada e onde artistas e público se confundem.

Peripécias que, afinal, são reveladoras da falta de um verdadeiro compromisso com a sociedade; um compromisso que uns se esqueceram já de ser seu dever privilegiar e que outros, noutros tempos, igualmente preteriram, ou arrumaram num lugar inalcançável e invisível.

É, porém, aí, no compromisso sério com a sociedade, mais do que nos erros, pecados e pecadilhos de uns e de outros, que os órgãos representativos da República e os seus titulares deveriam colocar o acento tónico.

É no imperioso acordo entre partidos, mesmo que diferentes, sobre os princípios e os consequentes objetivos político-sociais essenciais vertidos na Constituição que a todos nos rege, que se distingue, afinal, a Democracia de outras formas de governo.

E isso não significa que os erros, pecados e pecadilhos ocorridos pelos que se sucedem na governação não mereçam atenção.

Merecem e não devem impedir que, precisamente por serem apenas pecadilhos, e de alguns não constituírem crimes, que quem os cometeu não deva responder, já não digo moral ou eticamente por eles, mas ao menos, politicamente.

Afinal, a Política julga – e tem de julgar – com um código bem mais amplo e, por isso, também, mais intransigente do que os que a Justiça usa.

Um erro, um pecadilho, ainda que não constitua crime doloso, não deixa de ser o que é; não deixa de revelar, pelo menos, a pouca exigência ou a censurável imprevidência de quem o cometeu.

A não judicialização da política – que muitos e bem reclamam – passa, necessariamente, por aí, por uma responsabilização política mais exigente e clara dos que cometeram tais falhas.

Erros, pecados e pecadilhos


Um erro, um pecadilho, ainda que não constitua crime doloso, não deixa de ser o que é; não deixa de revelar, pelo menos, a pouca exigência ou a censurável imprevidência de quem o cometeu.


  1. No momento em que escrevo estas palavras, chove. Chove como há muito me não lembro de chover.

É confortável estar em casa, numa casa razoavelmente aquecida, e ver, lá fora, a chuva a cair.

Sei que a chuva é necessária e isso alivia-me a consciência, confortável que me sinto, de não ter de pensar, primeiro, nos que são obrigados a viver em casas desaconchegadas, frias, húmidas e superlotadas, pois não têm dinheiro para mais.

E, no entanto, esses podem, igualmente, estar a pensar o mesmo que eu, quando, olhando das suas janelas pequenas para rua transformada em rio, se lembram dos que, sem abrigo, procuram um lugar menos molhado para passarem a noite.

  1. Na televisão, passa o debate parlamentar que ocorre na Assembleia da República, em torno de uma moção de confiança proposta pelo governo e em que os nossos representantes – todos, ou quase – parecem interpretar com dramatismo uma peça há muito ensaiada e sem necessidade de ponto.

O que se discute pode parecer até relevante, caso nos abstraiamos do problema dos que não têm casa nem expectativas de a vir a ter, nos esqueçamos daqueles, muitos, para quem o salário mensal chega quase só até metade do mês, dos que, imigrantes, fazem o que podem para sobreviver e, mesmo assim, são insultados pelos filhos dos que emigraram anos antes, como eles.

Lá fora chove e isso é bom para a agricultura e para corrigir a seca que subsiste, há anos, no Sul, sem que os responsáveis tenham, entretanto, procurado, sequer, ter uma solução séria e perene para contrariar os seus efeitos e malefícios.

Na Assembleia da República discute-se já- noto agora – se o líder do governo é suficientemente confiável para continuar a desempenhar o seu cargo e se   o dirigente do principal partido da oposição tem as aptidões suficientes para, caso haja eleições, o substituir.

  1. Mas, com um olho na chuva e outro no ecrã, cogito espantado: substituir para quê, é que deveria ser a questão que os portugueses deviam colocar, primeiro a si mesmos, e depois aos candidatos à governação.

Saber quais são as políticas a que, independentemente de quem estiver circunstancialmente a governar, teremos na saúde, na habitação, nos salários, nas pensões, na educação, na cultura, nas infraestruturas.

E, todavia, não o fazem, nada lhes perguntam por, no fundo, saberem já a resposta: 1X2 é o resultado habitual da aposta em tais candidatos.

  1. Mas, meio adormecido e já sonhador, noto, ainda, que desconhecemos, também, a razão por que, fora das balizas bem delimitadas e guardadas por aqueles dois players, não se avança com uma proposta viável, e sobretudo visível, que mostre aos portugueses o que poderá ser a primeira parede de uma nova casa comum. Uma casa em que a grande maioria deles possa viver sem que as suas diferenças se tornem insuportáveis.

Uma casa comum, que, não sendo ainda o edifício pronto, onde caiba uma família perfeita – contradições sempre existem, até nas famílias mais unidas – seja, todavia, capaz de envolver uma parte significativa dos que nela hão-de viver a aventura assumidamente feliz da sua construção.

Tal parede, que se quer e pode erguer já hoje, é mais do que o conjunto das peças isoladas que a hão-de compor e que, com justiça, se vão separadamente, exigindo todos os dias, mesmo que muitos dos que, com coragem, as reclamam não saibam muito bem como juntá-las e com que fim.

Por si sós, isoladas umas das outras, tais peças não dão uma ideia do que possa ser a parede rebocada de novo e, menos ainda, da casa que, não hoje, mas seguramente amanhã, estará ao alcance da maioria construir.

E, no entanto, é já com a imagem dessa casa inventada, sonhada, desenhada e com as fundações cavadas que os portugueses poderão começar a querer e a ter a ideia do que possa vir a ser uma cidade nova.

Uma cidade mais amável com os seus habitantes, mais acolhedora para os que, já velhos, a construíram, mais bela e mais ecológica para os filhos e netos dos que nela já habitam; enfim, mais conforme com os êxitos civilizacionais, tecnológicos e culturais já conseguidos pelo homem até este quarto do Século XXI.

  1. Atento, de novo, miro, pelo canto do olho, o que se mostra no ecrã, acordado que fui por um discurso mais audível e empolgado.

Nas bancadas continuam os que mandam, e os que querem mandar, a discorrer em torno de peripécias de um espetáculo com entrada reservada e onde artistas e público se confundem.

Peripécias que, afinal, são reveladoras da falta de um verdadeiro compromisso com a sociedade; um compromisso que uns se esqueceram já de ser seu dever privilegiar e que outros, noutros tempos, igualmente preteriram, ou arrumaram num lugar inalcançável e invisível.

É, porém, aí, no compromisso sério com a sociedade, mais do que nos erros, pecados e pecadilhos de uns e de outros, que os órgãos representativos da República e os seus titulares deveriam colocar o acento tónico.

É no imperioso acordo entre partidos, mesmo que diferentes, sobre os princípios e os consequentes objetivos político-sociais essenciais vertidos na Constituição que a todos nos rege, que se distingue, afinal, a Democracia de outras formas de governo.

E isso não significa que os erros, pecados e pecadilhos ocorridos pelos que se sucedem na governação não mereçam atenção.

Merecem e não devem impedir que, precisamente por serem apenas pecadilhos, e de alguns não constituírem crimes, que quem os cometeu não deva responder, já não digo moral ou eticamente por eles, mas ao menos, politicamente.

Afinal, a Política julga – e tem de julgar – com um código bem mais amplo e, por isso, também, mais intransigente do que os que a Justiça usa.

Um erro, um pecadilho, ainda que não constitua crime doloso, não deixa de ser o que é; não deixa de revelar, pelo menos, a pouca exigência ou a censurável imprevidência de quem o cometeu.

A não judicialização da política – que muitos e bem reclamam – passa, necessariamente, por aí, por uma responsabilização política mais exigente e clara dos que cometeram tais falhas.