Quando vejo o animal em acção, sinto náuseas. Lembra-me uma hiena a devorar uma carcaça, o focinho ensanguentado enquanto refocila na carne podre. Trump.
Há poucos dias foi a vez do primeiro ministro da Irlanda ter de lhe aturar as boçalidades, à mistura com comentários às meias ridículas do vice Vance. O tom geral da conversa que manteve e mantém com todos era «a Irlanda tem-nos roubado graças aos meus antecessores que eram muito estúpidos» (sic).
Já nem falo daquele dia histórico de 28 de Fevereiro de 2025, em que destruiu a NATO em directo, insultou o Presidente Zelensky e o tentou humilhar perante as televisões do mundo inteiro. Saiu-se miseravelmente.
Pelo menos teve uma imensa virtude: tocaram todas as campainhas de alarme na Europa. Até aí, havia quem pensasse que com papas e bolos se poderia apaziguar o Trump. Nesse dia tornou-se claro que, com ele à frente, os EUA passaram de amigos e aliados para hostis à Europa. Ficou anotado e actado.
Ao contrário do que se possa pensar, o alarme europeu já deu resultados. Em primeiro lugar, a Europa entendeu que estava finalmente livre e solta em relação aos Estados Unidos. 80 anos de condicionamento e sujeição estratégica, foram revogados em 45 minutos de festival de boçalidade na Sala Oval.
Em segundo lugar, a Europa entendeu que o reverso de estar livre e solta significa armar-se e ter meios para fazer valer os seus valores. Os líderes reuniram, tocaram a rebate, tomaram decisões e elas estão a caminho. Vamos ter de gastar muito dinheiro em defesa, necessitaremos de 5 a 10 anos para atingir o patamar de poder militar dos Estados Unidos, vamos ter de fazer escolhas penosas, acabou-se o dividendo da paz, ou como alguém disse, o recreio.
Mas, a Europa vai reaprender a manejar o poder, coisa que em 80 anos foi esquecendo, e vai voltar a ser uma potência militar de primeiro plano. Somos 450 milhões de habitantes, mais a Reino Unido e a Ucrânia. Temos, de qualquer ponto de vista, o maior número de soldados e armas de qualquer outra região do mundo. O que há é que harmonizar todas essas armas e estabelecer estruturas de comando e controlo comuns. Não será fácil e foi por essa razão que o mecanismo europeu de defesa nunca saiu do papel, mas agora já todos entendemos que o caminho é para a frente e teremos de encontrar soluções. É um enorme avanço que, ironicamente, ainda um dia deveremos agradecer ao Trump.
Temos todos os meios de que necessitamos para o fazer. Somos a segunda maior economia do mundo, o 2º maior PIB per capita do mundo, temos muito por onde sacrificar. Ainda para mais, os líderes europeus entenderam finalmente que um investimento determinado em política de defesa, vai ajudar e muito à re-industrialização da Europa, ao desenvolvimento de centro de pesquisa de excelência, atraindo os melhores cérebros do mundo, à eclosão de mil e uma descobertas e progressos técnicos que serão muito úteis à defesa e vão permitir às empresas europeias criar produtos de consumo altamente competitivos.
Da mesma forma que a Airbus se tornou na melhor companhia de construção de aviões do mundo, também os construtores europeus de aviões militares chegarão ao patamar em que os seus aviões e misseis serão melhores e mais capazes e baratos que os americanos. Está mais do que ao nosso alcance.
Já dispomos de uma indústria militar muito avançada e competitiva. Falta agora dar-lhe a escala europeia, sem esquecer que a União Europeia já exporta 30% das armas vendidas no mundo.
Por outro lado, a nossa extraordinária situação geográfica, na ponta ocidental da Eurásia e a norte da África, dá-nos uma centralidade que os americanos não têm. Impõe-nos também uma abertura ao mundo que os americanos não querem.
Enquanto os americanos se entretêm a desmantelar o seu sistema de alianças, que era o seu primeiro anel de defesa, e a transformar amigos e aliados em adversários e concorrentes, a Europa tem de estabelecer ligações cada vez mais fortes com o Mercosul, a Índia a China e o sudoeste asiático, e no próprio “continente” Europeu, bem como na nossa vizinhança imediata (médio oriente e norte de África) pôr ordem na casa. Há-de chegar o dia em que os Europeus expliquem a essa gente que «há um novo Xerife na cidade» e somos nós. [1]
Durante esse tempo, a presidência Trump esforça-se por destruir internamente o sistema institucional dos Estados Unidos. Com todos os seus tão falados «checks & balances», se metade do que o Trump está a fazer na América fosse feito num país europeu, esse governo já tinha caído, ou acontecia-lhe o mesmo que à Hungria e era totalmente ostracizado e marginalizado. [2]
Mas o resultado para os Estados Unidos, da confluência da destruição das instituições políticas e da corrupção económica protagonizada pelos meta-barões da finança e pelos “techno-crony capitalists”, com a política agressivamente isolacionista do Trump (que conta com a aprovação do voto popular e maiorias no Congresso) vai levar os Americanos a sofrer uma redução drástica do seu poder internacional e a uma instabilidade crónica que vai determinar a diminuição relativa (ou até absoluta) da economia americana. [3]
Os Estados Unidos da América foram os grandes beneficiários da globalização, a sua moeda é hegemónica como moeda de reserva e meio de pagamento internacional. Quanto menos estiverem presentes na ágora internacional, menos o dólar contará como meio de pagamento e moeda de reserva internacional e acabará por ser substituído pelo Euro e pelo Remimbi. Nesse dia, os americanos que se habituaram a comprar coisas e pagá-las com papel, entenderão que para pagar o que compram necessitarão de dispor da moeda dos outros e que para disporem dela têm de lhes poder vender as suas próprias coisas, ou ficar limitados a um mercado vasto, é certo, mas limitado a si mesmo. [4] Tudo ao contrário do Europeu…
Serão mais uma república americana… daquelas onde tudo é possível e normalmente corre mal.
Nós por cá, se mantivermos o rumo, preservarmos a nossa democracia e o nosso estado de direito, soubermos ir corrigindo os excessos de um lado e do outro, continuarmos a ser o referencial internacional do respeito pelos direitos humanos, poderemos dar-nos ao luxo de ignorar as manias dos Estados Unidos, o que quer dizer, tratá-los como a China ou a Índia. Nem mais nem menos, a menos que continuem apostados em guerras tarifárias totalmente imbecis e nesse caso tratá-los-emos como se tratam os imbecis que querem guerras tarifárias ou outras: com ostracização e sanções. Temos pena.
Advogado, ex-secretário de estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade
[1] Kishore Mahbubani, It’s Time for Europe to Do the Unthinkable – Foreign Policy, 21 de Fevereiro de 2025
[2] The Path to American Authoritarianism: What Comes After Democratic Breakdown, por Steven Levitsky and Lucan A. Way – Foreign Affairs March/April 2025 publicado em 11 de Fevereiro de 2025
[3] Daron Acemoglu – The real threat to American prosperity – FT 8 de Fevereiro de 2025
[4] The Incoherent Case for Tariffs – Trump’s Fixation on Economic Coercion Will Subvert His Economic Goals, por Chad P. Bown and Douglas A. Irwin, Foreign Affairs. 11 de Março 2025
[i] Não vou pretender que não roubei o título deste artigo a Raymond Aron e ao seu clássico «Plaidoyer Pour l’Europe Décadente».