Roy Ayers. A Henrietta Lacks das vibrações contemporâneas

Roy Ayers. A Henrietta Lacks das vibrações contemporâneas


1940-2025 Everybody Loves the Sunshine deu-lhe as suas células imortais


Ele foi a Henrietta Lacks do regime fusional e de infinitas apropriações e revisões que exprime o caráter expansivo da música, e não tinha grande paciência para as etiquetas, os estilos e as fronteiras a que tantos se agarram em desequilíbrio. Como se uma definição pudesse servir-lhes de corrimão, isolar ou explicar uma forma de transe sonoro. Ele não receava afundar-se nessa trama espantosamente intrincada, e não queria interromper a sua exploração pondo-se a transmitir coordenadas para o exterior, a pensar a música com os conceitos dos leigos. O seu esforço, pelo contrário, ia todo no sentido da audição, tocava como um cego, como quem se serve para captar as ressonâncias à sua volta, para desenhar um trilho. Mas nas últimas décadas, as ressonâncias que recebia eram já de tal modo ensurdecedoras que poderá ter sentido que estava a desaparecer, como já antes ocorrera a tantos outros grandes músicos de jazz, que parecem desvanecer-se na tradição ainda antes de estarem mortos. Roy Ayers não deixava de ficar feliz por ver como tantos outros tinham sabido aproveitar-se de pedaços das suas próprias derivas, apropriando-se das suas descobertas para tomarem balanço e fazerem outras. 

Ele entendia que o vigor da música estava nessa comunidade de esforços, nessa alegria dos batedores que se lançam para diante sempre em direção a domínios mais vastos. Por outro lado, é difícil manter-se a par da sua lenda, quando esta se dispersou em tantos sentidos, e aconteceu-lhe como a muitos sentir que quando tocava parecia coxear atrás de si mesmo, como se fosse uma imitação pálida daqueles que colheram os frutos das sementes lançadas por ele nessa subtil fusão em que o jazz se favoreceu com enxertos do funk, do R&B e da soul. Mas não se tratava de misturar géneros, antes de elevá-los num plano comum, numa articulação libertadora. Tendo elegido um instrumento já de si um pouco marginal, este vibrafonista norte-americano trazia desde logo um recorte aos sons menos conciso, o som ele mesmo parecia transbordar, e foi essa sugestão que ele soube carregar e expandir tornando-se pioneiro na década de 1970 ao instalar a corrente de transmissão para que uma série de influências pudessem reforçar o ímpeto rítmico do jazz, inspirando tantos outros a deixarem-se de purismos e a aproveitarem o embalo, encarando os diferentes estilos como soluções para as suas necessidades específicas em termos de expressão. Ayers alcançaria um estatuto de profeta naquela década, lançando Everybody Loves the Sunshine, o álbum de 1976 que se tornou a pedra angular do seu legado. As suas vibrações calorosas e reconfortantes transformaram-na num padrão duradouro que se ancorou nas tabelas, graças ao facto de ter sido ‘samplada’ umas 200 vezes (segundo a estimativa do The New York Times) em discos de hip-hop por sucessivas gerações de músicos que cresceram sob o halo da sua música. «Aquela canção mudou tudo para mim», disse Ayers numa entrevista ao The Guardian. «Continua a ser a última canção, aquela com que me despeço nos meus espetáculos. A uma receita infalível, e que leva sempre as pessoas a juntarem-se a mim, e já foi samplada mais de 100 vezes, por todo o tipo de músicos, do Dr. Dre ao Pharrell Williams. Parece tocar um nervo comum a todas as gerações. Parece que, com excepção do Drácula, toda gente adora a luz do sol.

E se o sol persiste nessa radiância ilimitada, Ayers estava doente há vários anos, e fora já inteiramente absorvido pelos tantos ecos que armadilhou, e assim virou-se na única posição onde nenhum amanhecer pode já aquecer-nos o sangue, na passada terça-feira, num hospital em Manhattan, Nova Iorque. Tinha 84 anos.

Como assinala Geoff Dyer, houve um período em que os beats, os hipsters e os brancos negros de Mailer eram instintivamente atraídos para o jazz como a música da revolta, ao passo que nos nossos dias o jazz é cada vez mais um estilo a que as pessoas chegam depois de se aborrecerem com a banalidade da música pop. No fundo, o jazz é ainda uma forma de graduação, de se atingir essa música clássica negra, que persiste a sua lenta evolução sem abandonar a ousadia e a tentação de ir a par dos limites, mas sem nunca abdicar dos padrões de excelência musical. Ora, Ayers surgiu num período em que o bebop abriu caminho a uma série de variantes, e tendo ele começado pelo hard bop, baixou a guarda, em vez de uma abordagem defensiva, admitiu uma transição ao formar o grupo Roy Ayers Ubiquity. Cultivando um som suave e característico que misturava soul exuberante, jazz elástico e funk, Ayers enfatizava o ritmo e a textura, uma combinação que lhe deu uma mão-cheia de êxitos de R&B; Running Away entrou no Top 20 de R&B da Billboard em 1977, com Hot a igualar esse feito em 1985.

Ao mesmo tempo que se deixava contagiar por outras estirpes e tradições, também as suas canções se tornavam mais aptas a circularem e serem adaptadas. E a prova disso mesmo é a forma como o som de Everybody Loves the Sunshine ganhou uma ubiquidade cada vez maior, sobretudo após ter sido usado por Mary J. Blige, nos anos 1990, em My Life. E com o passar dos anos esse vírus não esmoreceu, tendo dado origem a novas estirpes pela mão de Dr. Dre, Kendrick Lamar, A Tribe Called Quest, Kanye West, Common e Tyler, the Creator, entre tantos outros artistas. 

«Roy Ayers foi uma espécie de padrinho das vibrações contemporâneas. Ele trouxe um elemento diferente para a composição com o seu som», vincou o vibrafonista Warren Wold ao The New York Times no ano passado. «A música de Roy oferece tantas possibilidades que te podes pôr a improvisar por cima e ficar ali a fazer floreados, mas também simplesmente abancar e relaxar, ficando com ela como pano de fundo. A vibração é sempre forte».

Natural de Los Angeles, Ayers nasceu a 10 de setembro de 1940. Criado numa família com forte ligação à música, tinha apenas cinco anos quando ficou hipnotizado pelo som do vibrafone ao assistir a uma performance da Big Band de Lionel Hampton. Mas foi só aos 17 anos que pode deitar as mãos a um. Entretanto, aprendera a tocar piano e passou uns anos num coro de igreja, antes de ir estudar teoria musical no Los Angeles City College. Acabava os dias a tocar jazz nos clubes noturnos. A primeira vez em que participou numa sessão em estúdio foi para colaborar com o saxofonista Curtis Amy na gravação de um disco. Em 1963, conseguiu o seu próprio contrato de gravação, estreando com o álbum West Coast Vibes. Mas foi a colaboração com o flautista Herbie Mann que lhe deu maior reconhecimento, e depois de pôr o seu vibrafone ao serviço da banda de Mann, este retribuiu o favor produzindo os três álbuns seguintes de Ayers, tendo sido essas sessões no final da década de 1960 que levaram o vibrafonista ao registo fusional em que jazz apanhou todas as doenças que andavam no ar e deixou de ser só aquela forma de aristocracia negra. Numa das suas últimas entrevistas, em 2016, à Dummy, Ayers mostrou-se bastante satisfeito por sentir que o seu legado anda por aí a solta e continuava a contrair todo uma série de novas doenças: «É maravilhoso o desejo que os jovens manifestam pela minha música. É maravilhoso porque a minha popularidade continua a crescer».