Natural de Leiria, João Ferreira faz parte de uma geração de jovens que vive o desporto automóvel com enorme paixão. Começou a correr de karting aos nove anos e, aos 25 anos, é já um pilar da equipa alemã X-raid – vencedora do Dakar por seis vezes – e prepara-se para defender os três títulos conquistados o ano passado. E começou bem ao vencer a Baja Montes Alentejanos, primeira prova do Campeonato de Portugal de todo-o-terreno. Nesta entrevista, João Ferreira falou da paixão que sente pelo mítico Dakar e o desejo de lutar pela vitória na maior e mais difícil corrida do mundo.
Como é que apareceu a paixão pelo todo-o-terreno?
O meu pai [Paulo Rui Ferreira] fazia todo-o-terreno, foi daí que nasceu esta paixão. Desde muito novo que vivo os automóveis de forma intensa com a minha família e alguns amigos que já tinham corrido. Na minha casa sempre se respirou automóveis e assistíamos a muitas provas, sobretudo de todo-o-terreno. Depois de oito anos de karting queria fazer uma coisa diferente, foi então que surgiu a possibilidade de participar nas 24 Horas de Fronteira em 2018, com uma equipa de amigos. Foi uma brincadeira que correu bem, gostei imenso da experiência e decidi seguir com o todo-o-terreno.
A fantástica temporada de 2024 culminou com a conquista da Taça do Mundo e da Taça da Europa FIA de Bajas e do campeonato nacional de todo-o-terreno utilizando o Mini JCW T1+ e o Can-Am Maverick. Ficou alguma coisa por ganhar?
Não. Vencemos as três competições que nos propusemos conquistar. Foi um ano incrível e estou extremamente feliz pelo desempenho que tivemos. No início do ano ainda pensámos em lutar pelo Campeonato do Mundo com o SSV. Terminamos o Dakar na quinta posição, mas em Abu Dhabi caímos numa duna e desistimos e, em Portugal, voltamos ao Mini porque era o carro mais indicado para fazer um bom resultado [foi 2.º classificado] e acabamos por mudar de estratégia. Fiz 22 corridas ao longo da toda a época. Foram fins de semana consecutivos a correr e muitos dias de testes em Marrocos e na Europa. Foi um ano de loucos!
Participou numa das edições mais difíceis do Dakar. O que representa para um jovem piloto esta prova?
Além de ser a prova de todo-o-terreno mais dura do mundo, o Dakar é também o sonho de qualquer piloto. Tive a sorte de concretizar esse sonho aos 23 anos e sinto-me privilegiado por isso. As condições extremamente adversas, as longas etapas, mais de 20 dias vividos em caravana e o cansaço físico e psicológico fazem do Dakar uma prova muito especial.
Que sensações cria num piloto?
É um modo de vida ou, dito de outra forma, a minha vida é o Dakar. Estar à partida do primeiro Dakar foi um momento marcante, que mexeu bastante comigo. Todas as provas que faço ao longo do ano são com o intuito de fazer quilómetros e ganhar experiência para chegar ao Dakar mais forte. Claro que é importante lutar pelos campeonatos, mas todo o trabalho é feito a pensar nessa prova. Para qualquer piloto é mais importante ganhar o Dakar do que o Campeonato do Mundo.
Terminou em oitavo da geral e foi segundo numa etapa. Satisfeito?
Sim. O meu objetivo era ficar no top 10 e isso foi conseguido. Em 2026, quero estar entre os favoritos à vitória, mas isso vai depender muito do trabalho que vamos fazer este ano com o Mini JCW da X-raid. Começo a preparar o próximo Dakar a partir de abril, com testes em Marrocos. Em todas as corridas do Mundial vamos ter novidades no carro. Temos de trabalhar muito para sermos melhores dos que as outras equipas.
A primeira coisa que muitos pilotos dizem quando terminam a prova é que não pensam voltar. É mesmo assim ou é apenas um desabafo?
É um desabafo. Eu também já disse o mesmo. Os últimos dias são sempre muito duros, quando a prova termina é um alívio e só quero chegar a casa. Uma semana depois já estou a pensar na próxima edição.
Durante as 12 etapas, os pilotos andam sempre no limite das suas possibilidades?
Não sei se atingimos o limite, mas sei que andamos sempre em níveis muito altos. As etapas são extremamente longas e as velocidades elevadas em percurso secreto, há sempre muitas coisas a acontecer, o que aumenta o risco para os pilotos. Se as coisas começam a correr mal existe algum stress que piora a situação.
Até que ponto a componente psicológica é fundamental numa prova com estas características?
É muito importante. Tanto eu como o meu navegador, o Filipe Palmeiro, temos de ter a cabeça “alinhada” para não haver quebras ao longo das etapas.
A etapa de 48 horas é para viver ou sobreviver?
À partida para essa etapa o mindset é um pouco diferente, porque é uma etapa muito longa e não temos assistência. A primeira parte do setor seletivo foi dura e causou grande desgaste, pois fizemos sete horas consecutivas ao cronómetro. Temos de fazer uma boa gestão do andamento.
A meio da etapa, dormem em tendas e recebem uma ração militar. Como é o ambiente entre vocês?
Tive a sorte de estar no grupo dos pilotos da frente e foi muito divertido. A meu lado estava o Sébastien Loeb e o Carlos Sainz, durante a prova quase não nos vemos porque cada um está no seu bivouac. O ambiente foi muito bom e todos conviveram à volta de uma fogueira.
A ração alimentar era boa? E dormir?
Era melhor do que o ano passado. Tínhamos almôndegas com massa e arroz com frango. O cansaço era tanto que consegui dormir facilmente dentro do saco-cama.
Como se prepara uma prova desta dimensão?
Se quisermos estar em condições temos de fazer uma preparação permanente ao longo do ano. Não é possível chegar a outubro e ir para um ginásio a pensar na corrida de janeiro porque não vai resultar.
O que é necessário para chegar ao fim de um Dakar?
O Dakar é uma prova de resistência, onde os melhores pilotos do mundo andam a fundo do primeiro ao último dia. Este ano, depois de quase sete mil quilómetros de corrida os dois primeiros ficaram separados por menos de quatro minutos e, numa etapa de 600 quilómetros, o mais rápido venceu com apenas um minuto e meio de vantagem, isso não é gerir nada, é andar a fundo o tempo todo. Claro que há etapas onde é preciso alguma atenção, mas, regra geral, o ritmo é muito alto. Depois, os carros são extremamente fiáveis, aguentam quase tudo, o que permite manter um andamento elevado. As principais desistências aconteceram por acidente e não por avarias. Fiz o Dakar todo e apenas tive um problema com um sensor e uma fuga de água devido a um toque que dei. A X-raid diz que o limite não é o carro, mas sim o piloto.
Os protótipos do Dakar são capazes de andar a fundo em qualquer estrada. Como define o Mini JCW T1+?
É um carro feito exclusivamente para o todo-o-terreno, com chassis tubular, carroçaria em fibra de carbono, motor V6 3.0 diesel com 360 cv e caixa sequencial de seis velocidades. Por questão de segurança, a velocidade está limitada a 170 km/h. Este ano conseguimos ganhar etapas e não tenho dúvidas que, em 2026, vamos ter um carro ainda mais competitivo e lutar pela vitória.
A equipa refere a importância de utilizar combustível renovável nas corridas. É mesmo assim?
Sem dúvida. Durante o Dakar usámos combustível Repsol Nexa diesel 100% renovável. Aliás, as equipas oficiais só correm com combustíveis 100% renováveis e biocombustíveis. O Mini utiliza o mesmo combustível do utilizador comum e não há qualquer perda de rendimento relativamente ao diesel normal, mas poluiu muito menos, é uma forma mais limpa de correr. Neste momento está apenas disponível para clientes com cartão frota mas, em breve, estará disponível em qualquer estação de serviço. Eu próprio já coloquei esse combustível no Mini JCW no evento Leiria Sobre Rodas.
Já correu com o protótipo YXZ 1000 Turbo, com que ganhou uma etapa no Dakar, e com o Mini JCW. Considera-se a referência da equipa X-raid?
Desde 2022 que a X-raid nunca teve um piloto a fazer tantas corridas de forma regular como eu. Adquiri um carro deles e fomos construindo uma relação de confiança. Acreditam no meu trabalho. Fizemos 80% dos testes de desenvolvimento do novo motor a gasolina, dos diferenciais e suspensões. Os pilotos que fizeram o Dakar gostaram muito do carro, o que mostra que os testes que realizámos foram positivos. Além disso, existe uma relação pessoal muito boa com o responsável da equipa e com grande parte dos mecânicos, que são portugueses.
Passam longas horas num exíguo habitáculo. Como é a relação com o navegador?
O Filipe Palmeiro tem grande experiência e a minha evolução enquanto piloto deve-se muito a ele. Naturalmente há momentos de tensão e ficamos pouco satisfeitos quando perdemos tempo. Dentro do carro não é o navegador que se perde, nem o piloto que tem um mau dia, somos nós que falhamos, e temos de nos ajudar um ao outro. Uma coisa é certa, nunca conseguiria fazer o trabalho do Filipe, acho que me ia perder muitas vezes.
Em termos de pilotagem, quais são os pontos forte e onde pode melhorar?
O ano passado senti uma grande mudança. Antes, não conseguia ser rápido no primeiro dia de prova, mas no segundo dia era muito forte e acabava por vencer. Atualmente, sou rápido do primeiro ao último dia. Apesar disso, acho que posso melhorar a minha condução nas dunas e na lama.