Lei dos Solos: última palavra na mão de Marcelo, especialistas pouco confiantes

Lei dos Solos: última palavra na mão de Marcelo, especialistas pouco confiantes


Apesar de elogiarem algumas alterações que foram feitas no Parlamento, Helena Roseta e Pedro Bingre do Amaral lamentam resultado final que consideram que em nada irá resolver o problema da habitação e acusam Governo de Costa de ter aberto portas a Montenegro.


A última palavra em relação às alterações da Lei dos Solos aprovadas no Parlamento cabe ao Presidente da República. O diploma segue agora para Belém para promulgação, mas a expectativa é que receba luz verde. Ao Nascer do SOL, Helena Roseta, uma das promotoras da carta aberta destinada ao Governo contra estas modificações, acredita que é para avançar. «Desta vez foram aprovadas alterações por uma larguíssima maioria e foram aprovadas tanto pelo PS como pelo PSD. O Presidente não tem muito por onde pegar», diz.
Entre as principais propostas de alteração aprovadas está a substituição do conceito de habitação de ‘valor moderado’ – utilizado pelo Governo – por ‘arrendamento acessível’ ou ‘a custos controlados’. Outra das mudanças diz respeito ao facto de que para requalificar o terreno terá de comunicar à câmara municipal se a propriedade rústica tem potencial para vir a ser um espaço de construção. No entanto, as autarquias só o podem permitir se a reclassificação de solos rústicos em urbanos tiver como finalidade construção habitacional e que um mínimo de 70% da área total de construção será destinada a habitação pública, arrendamento acessível ou habitação a custos controlados.
Alterações que não convencem Helena Roseta. «O mal está feito. Estamos a tentar endireitar a sombra de uma vara torta. É um controle de danos. Trata-se de um mal menor e ficou menos mal do que estava. Tirou-se o valor moderado que claramente servia para inflacionar os preços, fizeram-se mais umas pequenas alterações, mas são pequenas salvaguardas, protegeu-se um bocadinho melhor da Reserva Ecológica Nacional, mas não da Reserva Agrícola Nacional, em que uma parte substancial não fica protegida, o que é mau», refere.

A culpa do Simplex
Roseta diz que o problema mantém-se mas também aponta culpas ao Partido Socialista. «A lei é um erro e o PS estava um bocado condicionado nesse aspeto porque a porta para que esta lei saísse como saiu foi aberta pelo Simplex urbanístico do Governo anterior. Até aqui só se podia alterar a classificação do solo rústico como urbano através de um plano territorial: diretor ou pormenor, os planos demoravam muito tempo e António Costa foi muito pressionado para acelerar isso, acabou por acrescentar na Lei dos Solos uma alínea a dizer que podiam ser alterados por planos ou por deliberação da Câmara e Assembleia Municipal. Este Governo aproveitou a porta aberta, não mexeu na Lei dos Solos que estava no programa de Governo e mexeu apenas no regime dos planos», salientou.
Também Pedro Bingre do Amaral, presidente da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), que assinou a carta aberta promovida por Helena Roseta, elogia a redução do preço máximo autorizado para a venda dos imóveis, mas lamenta o resultado final. Ao Nascer do SOL, afirma que «nada garante que se consiga baixar os preços porque falam numa redução de 25% relativamente à média nacional» e diz que, do ponto de vista estatístico, não fica garantido que os preços fiquem controlados. «Quem garante que um imóvel que seja construído nessas condições não possa depois ser convertido em alojamento local ou ser arrendado?», questiona. E nesse caso, de acordo com o mesmo, na prática vai valorizar o imóvel de seguida, neutralizando os seus efeitos.
Os problemas não ficam por aqui. Segundo Pedro Bingre do Amaral, independentemente do valor bruto do imóvel acredita que vamos continuar a ter um problema porque entende que estas alterações autorizam a construção fora dos atuais perímetros urbanos. «Esta lei inequivocamente vai aumentar a dispersão. Este Governo optou por criar um mecanismo que forçasse a entrada no mercado dos terrenos expectantes em redor das cidades. Não vai resolver rigorosamente nada», salienta.
A par disso, diz também que gostaria de ver, desde que a lei foi foi aprovada a 29 de janeiro até esta revisão, quantos loteamentos já foram aprovados. «Quantos projetos entraram por esta via? E quantos projetos entraram com ligações aos autores da lei? Esta lei tinha sido anunciada em final de novembro. Em início de dezembro, já as agências imobiliárias anunciavam nos seus sites como converter solo rústico em solo urbano. Quem tenha estado bem preparado, no primeiro dia que a lei entrou em vigor pôde pôr os projetos. Se estiver politicamente bem colocado junto da autarquia conseguiu aprovar os seus loteamentos», acusa.
Pedro Bingre do Amaral arrasa ainda o Partido Socialista. «O PS contemporizou esta medida e não nos podemos esquecer que o autor material desta lei é um ex-secretário de Estado do Partido Socialista. Todas as pessoas que estiveram envolvidas na realização desta lei, desde o consultor externo ao secretário de Estado, ao ministro e ao primeiro-ministro todos estão ligados ao setor imobiliário, legislaram em setor próprio», critica.

Risco de prorrogação
O responsável chama ainda a atenção para o facto de o prazo de cinco anos que foi definido para a sua execução facilmente será prorrogado. «Por mais que o Governo diga que a licença tem um período de tempo limitado sabemos que depois vai ser prorrogado ad eternum, como é costume neste país». E dá como exemplo o que aconteceu com os Planos Diretores Municipais em que, de acordo com a Lei de Bases de 2014, já deviam estar todos revistos nessa data, mas 70% dos municípios não cumpriram os prazos e foram recebendo autorização de prorrogação. «Se os sucessivos governos têm permitido a prorrogação da revisão dos Planos Diretores Municipais para manter o status quo, então o que é que nos garante que não vão prorrogar estas licenças, como tem sido prática generalizada?», questiona, acrescentando: «A partir do momento em que é emitido o alvará de loteamento, aquele imóvel ganha um determinado valor económico, passa a ser utilizado como caução para empréstimos bancários e nenhum Governo vai querer caducar o alvará porque senão desvaloriza a caução e gera imparidades nas carteiras de ativos imobiliários. Portanto, é evidente que não vai haver caducidade dessas licenças. No organismo português, não há nenhum historial do alvará de loteamento caducar. Isso não existe».

Baixa de preços
afastada
O presidente da Liga para a Proteção da Natureza afasta que haja qualquer consequência na redução de preços e acena com as declarações das próprias agências imobiliárias que já afastaram esse cenário. «O Governo e os seus assessores são os únicos que dizem que vai baixar, não há rigorosamente nenhum consenso a não ser junto de alguns promotores imobiliários que dizem que vai ser muito bom porque vão poder vender terrenos a loteadores a um preço inflacionado», salienta.
E, mesmo admitindo que se assistíssemos a uma redução da valores, o responsável acredita que iríamos assistir a uma situação que acontece desde 1965, em que «a cidade cresce em função do capricho do proprietário». E vai mais longe: «A lei diz que o novo alvará de loteamento será iniciado por impulso do proprietário interessado? Então agora a cidade cresce por impulso de privados? Quando se constrói um bairro, isso implica encargos para as gerações presentes e futuras. Então agora é o proprietário de uma quinta que decide que vai fazer cidade? Agora é um autarca que vai decidir que a uns quilómetros do centro vai crescer um bairro, numa quinta? Isso é o que andamos a fazer desde 1965 com os resultados que se vê. Isto é perpetuar o erro de 1965, dos loteamentos dispersos por quintas e casais. Não é assim que se faz crescer uma cidade».
Também a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) alerta para os impactos negativos das recentes alterações à Lei dos Solos, discutidas e aprovadas no Parlamento. Segundo a associação, as mudanças introduzidas podem inviabilizar a aplicabilidade prática da Lei e afastar soluções efetivas para a crise habitacional que se faz sentir no país. «A Lei dos Solos, inicialmente vista pelo setor como uma medida positiva dentro de um pacote mais amplo – que incluía o Simplex e ajustes no IVA da construção – foi alterada de forma significativa, gerando grande preocupação entre os promotores e investidores imobiliários. O que ontem parecia ser um avanço, hoje corre o risco de se tornar uma medida sem impacto real. Com as mudanças propostas no Parlamento, a lei pode perder qualquer efeito prático na dinamização da oferta habitacional», afirma Hugo Santos Ferreira, presidente da entidade.

Mais burocracias
E identifica três obstáculos críticos à aplicação da nova Lei dos Solos: «Mais burocracia na reclassificação do solo, regresso ao regime de habitação a custos controlados – a substituição do conceito de ‘habitação de custos moderados’ pelo regime de ‘habitação a custos controlados’ traz desafios adicionais. Este modelo já se revelou burocrático e ineficaz no passado, dificultando a promoção de novos projetos habitacionais – exigências financeiras desajustadas à realidade do setor: a nova exigência de comprovação de viabilidade económica e fontes de financiamento antes mesmo da existência de um projeto concreto cria um entrave adicional. Que banco aprovará um financiamento sem sequer haver um projeto definido?».
De acordo com a APPII, o setor imobiliário «tem sido alvo de críticas injustas e não pode continuar a ser tratado como ‘o vilão’ do problema da habitação», lembrando que representa 15% do valor do PIB nacional e, apesar de defender que quer ser parte da solução, diz que é essencial que o Parlamento crie condições viáveis para aumentar -a oferta habitacional.