Apesar de conduzida pelo mais desabusado dos timoneiros, nem Conan O’Brien foi capaz de abalar uma coreografia de tal modo forçada e acelerada que não deixa qualquer margem à espontaneidade ou ao imprevisto. Mas a cerimónia do passado domingo, celebrou as produções independentes e Sean Baker, o realizador de ‘Anora’,fez questão de exigir dos estúdios que se deixem de criancices e, em vez de parques de diversões, voltem a focar-se na experiencia única que oferecem as salas de cinema.
Foi uma noite que de memorável teve muito pouco. E se o que gerara maiores expectativas fora o convite a Conan O’Brien para apresentar a cerimónia dos Óscares, claramente o convite veio com uma série de limitações ao seu estilo habitual, e isto numa dos momentos críticos da vida política e cultural norte-americana. E se Conan tudo fez para que a mordaça não sobressaísse, se não se mostrou descaracterizado, não se pode dizer que o génio tenha chegado a sair da lâmpada. No fundo, enquanto anfitrião, o que Conan fez foi aceder a participar numa evocação e homenagem à sua desabusada persona e aos bizarros momentos que foi levando pela noite dentro às audiências, trazendo elementos experimentais a um género um tanto mortificado. Infelizmente, os disparates e o espontaneísmo, quando cuidadosamente coreografados, dificilmente produzem a ilusão de se terem suspendido os tais constrangimentos do formato. As restrições tornaram a cerimónia um tanto enfadonha, e a ABC registou uma queda de 8% nas audiências, atraindo 18 milhões de espectadores face aos 19,5 milhões do ano passado. Jimmy Kimmel, que apresentara as últimas edições, tornou-se uma das vozes mais audazes na denúncia da alucinada degradação que Donald Trump tem promovido a partir da Casa Branca, e tendo-se tornado um dos primeiros nomes na lista do Presidente americano, ditava a cautela que o melhor era ir com outro. Mas não foi o suficiente para dar continuidade a três anos em que as audiências dos Óscares tinham vindo a aumentar consecutivamente. Este declínio já era de prever, num ano em que o grosso do entretenimento está concentrado nos próprios programas de informação, Hollywood perde para a Casa Branca, e em vez de estimular a fantasia, põe-se a máquina a trabalhar na recomposição delirante da própria realidade. Assim, a queda seguiu a tendência de outras cerimónias de prémios, que viram o seu crescimento travar este ano. Os Grammy Awards atraíram 15,4 milhões de telespectadores no mês passado, o que representa uma descida de 9% em relação ao ano anterior. Os Globos de Ouro, em janeiro, também registaram um modesto declínio em relação ao ano passado.
Noite triunfal de ‘Anora’
Se em termos de produção a noite das estrelas não teve grande brilho, foi ainda assim uma noite em que se deu uma curiosa inversão nos padrões de Hollywood. Desde logo, o claro vencedor deste ano foi Anora, de Sean Baker, que foi chamado quatro vezes ao palco, levando quatro das principais estatuetas para casa – Argumento Original, Montagem, Realização e Melhor Filme –, tendo a protagonista do filme, Mikey Madison, surpreendido muitos quando, contra a tendência das apostas, foi anunciada a vencedora na categoria de Melhor Atriz. E se apenas Walt Disney tinha recebido quatro estatuetas na mesma gala dos Óscares, este tinha então mais do que uma produção nas listas de nomeados, enquanto Baker levou o pote por um só filme. E cedo se percebeu que o tema subjacente às festividades da noite foi a produção. Os três produtores de Anora – Baker, Samantha Quan (sua companheira) e Alex Coco – nos seus discursos de agradecimento não deixaram de enfatizar que tinham chegado ali à proa de uma produção independente (um orçamento de seis milhões de dólares e uma equipa de cerca de quarenta pessoas, segundo Coco), a qual resultava de um trabalho de amor e devoção. E se o realizador de Anora já há algum tempo que pairava e ia fazendo furos na caixa da Academia com os seus filmes anteriores The Florida Project, que valeu a Willem Dafoe uma nomeação para ator secundário, e Red Rocket, que ainda gerou algum zunzum, mas sem chegar a impor-se. Desta vez, o mais animador foi o facto de a sua produção não surgir desacompanhada. The Brutalist, feito também de forma independente, contou com um orçamento que rondou os 10 milhões de dólares, e também reclamou três estatuetas, tendo o seu protagonista, Adrien Brody, arrebatado pela segunda vez o prémio de Melhor Ator. A Real Pain, o filme de Jesse Eisenberg, ficou-se por um orçamento de três milhões de dólares, e deu a Kieran Culkin a estatueta de Melhor Ator Secundário. E mesmo na categoria de filme de animação, a poderosa Pixar fez de Golias ao cair perante um filme de animação independente, Flow, feito por quatro milhões de dólares pelo realizador letão Gints Zilbalodis, com aquilo a que ele descreveu como uma equipa nuclear de “dois ou três”. Os dois únicos nomeados para Melhor Filme que tiveram resultados de bilheteira realmente imponentes, Wicked e Dune: Parte II (cada um com mais de 700 milhões de dólares até à data), voltaram para casa apenas com os prémios nas áreas técnicas ou de design, vendo assim reconhecidos apenas esses elementos que custam mais dinheiro.
O papel da Academia
O que isto significa é que a Academia desta vez percebeu qual poderá ser a sua mais nobre função, não a de se ver embrulhada nas exorbitantes campanhas dos grandes estúdios, nem de se ver reféns das pressões dos fãs, mas de se mostrar atenta e usar o seu foco para dar insuflar uma segunda vida àqueles filmes que, não sendo capazes de atrair grandes audiências, aguardam por esta emissão para terem enfim uma verdadeira oportunidade de chegar a mais pessoas. Afinal, a cerimónia dos Óscares não passa de um descarado espetáculo, mas se está em linha com as grandes franquias de Hollywood, e essas produções de grande orçamento que atraem um público que já vive anestesiado e só reage a doses ainda mais duras de espalhafato e exagero, a sua tarefa é a de formular uma espécie de má-consciência. E se os gigantescos blockbusters aos quais a indústria se amarrou por estes dias são como sintéticos testados em laboratório e administrados de forma compulsiva, os Óscares pareciam ter-se destinado à irrelevância, enquanto se contorciam para ir ao encontro daquilo que os executivos determinaram ser aquilo que o público em casa desejava. Se a cerimónia se estava a tornar demasiado longa, a solução era cortar a eito, acelerar, deixar umas piadas leves e tão curtas quanto possível aos apresentadores, apertar com os vencedores para não se alargarem nos discursos de aceitação, não fazer subir ao palco os vencedores dos Óscares honorários, uma vez que na sua maioria é ala geriátrica da coisa, empurrando-os juntamente com outras categorias técnicas para cerimónias paralelas, sendo esta a de despedida, realizada nalgum salão antes do Ano Novo e fora da vista do público. O importante era dar força ao espetáculo, tonificar tudo, investir nos elementos bombásticos, e não perder tempo a justificar seja o que for. Não demorou muito para se constatar que o brilho desenvolve a sua própria gangrena, e as audiências já têm os seus impulsos de tal modo mastigados pelas sequências de alguns segundos na ponta dos seus dedos, que uma grande cerimónia só pode ter sucesso se conseguir oferecer uma espécie de antídoto para esse veneno de dispersão das consciências.
Mas a cerimónia dos Óscares em vez de uma tremenda gala que entrava pelas casas das pessoas e lhes dava a impressão de terem na sua sala os grandes nomes do cinema, numa espécie de convívio alargado, lembrando que há momentos assim, em que a grande escala aproveita a um sabor de familiaridade, e celebra esse elemento de fantasia que nos lembra que o mais importante nem são os filmes, mas essa vida secreta que traficamos nas intermitências do desapiedado e sufocante quotidiano. No fundo, Hollywood deveria ser o sindicato que trabalha em nome daqueles que não têm condições de dirigir grandes produções no momento em que fecham os olhos, pois o sono serve-lhes menos para exaltações do que para se libertarem da sujidade do dia-a-dia. Contudo, a partir do momento em que deixam os fatos do estúdio tomar as decisões, a cada ajuste que estes promovem, a cerimónia torna-se mais inautêntica, menos jovial, menos íntima, e mais distante daquele espírito verdadeiramente aberto e comemorativo. «Com a alegria forçada do seu ritmo frenético, tem todo o calor e encanto de uma consulta de urgência», como assinalava Richard Brody, crítico de cinema da The New Yoker. «Há pouca humanidade numa estatueta entregue nervosamente com o tique-taque de um relógio a crescer sobre eles». E basta pensar nesta imagem do tempo com a sua pressa avassaladora, munido dos cães de caça de uma orquestra, ressaltando a forma como a música de gala pode ser usada para sufocar uma voz que tenta extrair algum sentido no meio de todo aquele aparato.
Filmes premiados não salvam salas de cinemas
Se no mundo de língua portuguesa a maioria das atenções foram atropeladas pela campanha organizada como uma claque desportiva em torno de Ainda Estou Aqui, tendo Walter Salles levado a estatueta de Melhor Filme Internacional, apesar do assédio e do acosso por parte dos fãs brasileiros, Fernanda Torres não levou o cobiçado prémio de Melhor Atriz, mas teve a inteligência de se juntar ao coro que celebrou a noite triunfal de Sean Baker. E ao aceitar o prémio de Melhor Realização, entregue por Quentin Tarantino, Baker exortou cineastas, distribuidores e espectadores a abraçarem as salas de cinema, em nome de «uma experiência comunitária que simplesmente não se tem em casa». Contudo, como assinalou Brody, estes filmes que conseguem arrebatar os Óscares não irão salvar as salas de cinema. «Eu também adoro ir ao cinema, mas o esforço para atingir grandes audiências com filmes de nicho é semelhante a exortar os leitores a comprar jornais e revistas impressos; é um apelo à nostalgia», vinca Brody. Por isso, a resposta não passa apenas por reforçar o controlo criativo dos cineastas, e apostar no cinema independente, é preciso que Hollywood amadureça, depois de anos de concessões a um público infantilizado, que entra numa sala de cinema como num parque de diversões, com vontade de sentir essa convulsão que provoca uma montanha-russa que durasse umas duas horas. Nesse sentido, é quando a crítica falha em reconhecer o visionarismo operático de cineastas como Denis Villeneuve, Christopher Nolan, Alex Garland ou Tarantino que falha em reconhecer aqueles que estão verdadeiramente a testar os limites, sem abdicar do favor das audiências. Brody deplorou a nova adaptação de Dune, um clássico da ficção científica, que estabelece um formidável paralelo para os elementos decisivos da crise existencial que estamos a viver no presente. A Academia nem sequer fez um aceno na direção de Civil War. Mas há a distinta possibilidade de, nos próximos meses, ser a realidade a comprovar que as salas de cinema, mais do que laboratórios para formas alucinogénicas em termos estéticos, funcionam ainda como os grandes oráculos do nosso tempo.