Vivo num oitavo andar e recordo-me de ir a descer as escadas e de encontrar um vizinho que estava a fazer ginástica, descendo e subindo as escadas. Era um dos que levaram o confinamento à letra e nem à rua se atrevia a ir, sem ser para comprar comida ou remédios, uma das justificações que se dava à Polícia sempre que se era interpelado. Como nunca estive confinado, pois íamos todos os dias à redação – um grupo à volta de seis pessoas –, fazia-me imensa confusão fazer o percurso entre casa e o jornal e quase não encontrar um carro em circulação. Parecia que Lisboa, cidade onde vivo, tinha sido atingida por uma arma nuclear e nós, os que circulávamos, éramos os sobreviventes.
Há cinco anos, mais concretamente a 18 de março, o país fecharia para ‘obras’ e o comum dos mortais assistia através da comunicação social a funerais sem a presença dos familiares dos mortos.
O atual patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, retratou bem ao Nascer do SOL o período que se viveu: “Recordo-me de um funeral em que não era permitida a presença de pessoas que não fossem três ou quatro familiares à distância. Aquilo foi muito mau até do ponto de vista psicológico. E eu tive essa experiência com a morte do meu pai, que foi nesse período. Aquela sensação de estarmos na igreja a celebrar a partida dele e ele não estava ali, nem sequer o corpo, porque não podia. Estava dentro do carro a uns metros de distância”. Quando o número de mortos disparou, os funcionários das agências funerárias tinham que procurar entre dezenas de corpos qual era o morto que iam buscar.
Os fatos do pessoal hospitalar, onde só se viam os olhos dos profissionais, passaram a ser uma indumentária muito comum para todos.
A população foi mandada para casa, a 18 de março, e deu-se início ao teletrabalho, algo que transformaria as relações laborais, que nunca mais voltaram a ser as mesmas.
As sirenes do caos
Uma das imagens mais impactantes do confinamento talvez seja a de dezenas de ambulâncias à porta dos hospitais a tentarem ‘descarregar’ os ‘covidados’. À medida que os hospitais se iam enchendo, percebia-se que Portugal, um pouco como toda a Europa, não tinha ventiladores para salvar quem deles precisava, de gel para desinfetar as mãos ou até simples máscaras. Mesmo os testes para despistar o vírus, que hoje custam à volta de dois euros, eram bem mais caros e houve quase uma ‘batalha’ para adquirir máscaras e gel.
A China, onde a pandemia da covid-19 começou, vendia o que faltava na Europa. As câmaras do Porto e de Cascais ameaçaram não ficar à espera da burocracia do Estado e chegaram a comprar material hospitalar à China, para acudir aos seus munícipes.
A descoberta de uma vacina que prevenia a covid lançou a esperança e a discórdia ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, porque faltavam vacinas e foi preciso ‘apurar’ qual a mais eficaz. Depois havia o problema de vacinar a população toda, algo que não se adivinhava fácil. E aí entrou em ação o então vice-almirante Gouveia e Melo, que ficou como o símbolo da eficácia, tendo liderado o processo de vacinação. Ginásios onde nunca se tinha entrado passaram a ser familiares, pois foi nesses locais que decorreram processos de vacinação em massa.
Mas quem não acreditava na eficácia da vacina e se recusava a tomá-la, ficou quase votado ao ostracismo, tendo ficado conhecidos como os negacionistas. Estes, defendiam que as vacinas não passavam de um chip que alguém queria impor na população mundial, com o suposto objetivo de a controlar. Havia quem fizesse o teste do íman, colocando um talher junto ao local onde se tinha levado a vacina. Quem o fez, diz que o talher ficava colado ao corpo.
Independentemente da eficácia da vacina, também ainda estão por apurar as consequências da toma da mesma. Há quem defenda que as complicações ‘provocaram’ muitas mortes. Mas longe vão os tempos, aquando do desconfinamento parcial, em que para se entrar num discoteca, por exemplo, era preciso apresentar o cartão de vacinas.
Por essa altura, a solidariedade era uma palavra muito em voga. De Itália chegaram os cânticos à janela, manifestação que rapidamente chegou a Portugal. Confinadas, as pessoas iam para as varandas ou janelas dar graças aos médicos e demais pessoal hospitalar, bem como aos bombeiros e polícias. Muitos também escreviam nas redes sociais que o mundo nunca mais ia ser o mesmo e que a bondade seria uma realidade na vida de cada um. Como sabemos, tudo não passou de mais uma moda das redes sociais.
A loucura do contágio
Quando a 2 de março de 2020 foram noticiados os dois primeiros casos infetados em Portugal, muitos desvalorizaram o facto, pois as imagens que chegavam de Itália pareciam muito distantes. Mas, como em muita coisa que se passa em_Portugal, passou-se de uma desvalorização para uma paranoia completa. Muitas pessoas faziam as encomendas de produtos alimentares, e não só, e deixavam-nos de quarentena na casa de banho ou varanda durante 24 horas. Os mais radicais chegavam mesmo a passar álcool gel por todas as embalagens antes de lhes tocar.
Balanço incompleto
O balanço ao fim de cinco anos ainda é muito incompleto, pois faltam muitos estudos para se perceber quais as gerações que foram mais prejudicadas, que traumas ficaram ou quantas pessoas saíram prejudicaram por não terem tido acesso aos cuidados de saúde na altura, tendo desenvolvido doenças por falta de prevenção. Mas o que se fala mais é da saúde mental de milhares de pessoas. Quantas mulheres não terão sido obrigadas a sofrer humilhações diárias por terem de partilhar o mesmo espaço 24 horas por dia? Quantas crianças não terão ficado marcadas pela violência doméstica, física ou verbal? E, de entre os mais novos, é quase unânime que os mais pobres foram os mais prejudicados, pois as aulas à distância não os favoreceu. E os adolescentes que perderam a sua festa de maioridade? E os casamentos que se adiaram e acabaram por não se realizar?
Já nos mais velhos, foram muitos os que perderam laços de amizade, além de terem ficado separados de familiares mais ‘desapegados’. A esse propósito lembro-me de um amigo que teria 75 anos e que deixou de frequentar bares até altas horas: “A covid foi o fim da minha vida de boémio”.
Cinco anos depois, e 30 mil mortos a mais, estará Portugal preparado para um hipotética nova pandemia? Muitos cientistas alertam para o facto de estar próxima e ser mais violenta. Ao longo desta edição impressa as histórias que marcaram o país no período covid, com uma entrevista a Graça Freitas, a diretora-geral da Saúde que foi o rosto do combate diário.