A mulher que durante 16 anos, mais do que a chanceler alemã, foi a principal figurada política europeia, publicou um extenso e fastidioso volume de memórias narrando todo o seu percurso, mas, quando chega ao período da sua liderança, perde-se nos detalhes numa estratégia de iludir os leitores quanto ao seu fracasso em ir além das lides domésticasda vida política, incapaz de construir um projeto de futuro.
No final dos seus 16 anos na liderança da maior potência europeia, a antiga chanceler alemã Angela Merkel foi agraciada com um chorrilho de superlativos epítetos, o que parecia consolidar um balanço extremamente positivo da sua governação. Surgiam títulos que a saudavam como «rainha da Europa», «mulher mais poderosa do mundo», «líder do mundo livre», e se há muito lhe era reconhecida uma tenacidade e sangue frio que lhe permitiram impor-se como a figura dominante da política europeia, com algum distanciamento, e em face da derrocada da economia alemã nos três anos desde que se afastou, o seu papel vem sendo reavaliado, tornando-se claro que nunca sustentou propriamente uma visão política de longo alcance, mas foi gerindo o dia-a-dia, operando mais como uma mediadora, e sendo competente, sobretudo, na hora de desativar tensões e alcançar compromissos.
Por estes dias, ficou claro que falhou no principal: não soube ler as convulsões políticas que se desenhavam no horizonte europeu, e em vez de sustentar uma audaciosa estratégia que permitisse segurar a relativa tranquilidade social e política desde a II Guerra Mundial, limitou-se a agilizar soluções de curto prazo. Soube transmitir a impressão de que era uma pessoa com os pés bem assentes na terra, uma líder calma e sábia, capaz de resolver questões complexas implicando não apenas a Alemanha como a Europa. E foi também a única chanceler alemã moderna a abandonar voluntariamente o cargo, sendo que, ao longo de toda a sua carreira política, nunca houve qualquer indício de corrupção ou de trocas de favores, tendo sempre transparecido a sua fibra moral. Mas, no final de contas, aquele que acabou por ser o fator distintivo e o seu cartão de visita político é a sua intuição diplomática, a capacidade de lidar com políticos de campos opostos, não demorando a tirar uma radiografia dos elementos ideológicos que organizavam a sua leitura da realidade. Isto prende-se com o facto de ter vivido 35 anos do outro lado do Muro de Berlim, num país fraturado.
Intuição e capacidade de improviso
Nascida em 1954, na Alemanha Ocidental, filha de um pastor protestante que decidiu aceitar um cargo numa igreja da Alemanha de Leste, Merkel cresceu no seio de uma família cujas convicções religiosas a tornavam suspeita aos olhos da ditadura socialista. Naqueles anos a perspetiva da liberdade e de uma abertura democrática que lhe permitisse ter a carreira que veio a ter parecia impensável, mas com a precipitação dos eventos a partir de novembro de 1989, e a reunificação da Alemanha, aquela mulher de 35 anos teve o impulso de se adaptar ao novo contexto e rever as suas opções. Talvez a sua intuição e capacidade de improvisar lhe tenham sido os instrumentos decisivos na sua carreira política, mas desde que saiu de cena, o seu legado político tem sido reapreciado de forma bastante severa, e isso explica a grande expectativa que gerou o anúncio de que iria publicar as suas memórias, num volume de quase 700 páginas, que de imediato traduzido e publicado em diversos países, incluindo o nosso, tendo chegado às livrarias em novembro de 2024 – ‘Liberdade’.
O livro não traz grandes surpresas, e é bem o reflexo de uma líder que sempre esteve em cima das questões que marcavam o calendário, mas a quem faltou uma perspetiva de fundo ou uma capacidade de projetar a arrumação do tabuleiro algumas jogadas à frente. Merkel escreve num registo detalhado e exaustivo, num registo claro, quase de relatório, e sem a menor concessão ao artifício literário. O melhor que se pode esperar, a este nível, são alguns apontamentos de humor seco. Ao mesmo tempo, também preserva uma certa reserva, um decoro quase institucional, evitando mergulhar em considerações de natureza mais pessoal, em meditações ou desabafos que conferissem a esta autobiografia uma autenticidade e um apelo que, estando ausentes, fazem deste testemunho uma obra pouco inspirada e muitas vezes maçadora.
Mesmo no que toca a lançar alguns remoques face aos seus inimigos, Merkel prefere simplesmente servir-se do silêncio, mal os mencionando, e chega a ser frustrantemente opaca na hora de explicar as suas grandes decisões. De um modo geral, a sua memória, assistida pela sua coautora (a sua aliada de longa data e assistente pessoal Beate Baumann), é impressionante, mas o que as duas apresentam ao leitor é uma espécie de relatório de fim de mandato, em que a antiga chanceler presta contas numa narrativa fiel aos preceitos de austeridade de que ela foi a principal defensora na sequência da crise financeira de 2008. Por essa razão, a maior parte do livro terá pouco interesse para os leitores fora da Alemanha, e até mesmo na própria Alemanha, se não tiverem estado imersos nas minúcias da política alemã durante as últimas décadas.
Aos 70 anos, Merkel parece não ter ainda dado tempo a si mesma para refletir a fundo sobre a forma como o seu legado será apreciado nos próximos anos, parece estar agora numa campanha com vista a preservar uma memória acomodatícia, e não parece ter dúvidas significativas sobre as principais decisões dos seus 16 anos como líder, cujos principais desafios incluíram a já referida crise financeira global, a subsequente crise das dívidas soberanas na Europa, o afluxo de refugiados em 2015-16 e a pandemia de covid-19.
Sem surpresa, a maior parte das reações iniciais dos comentadores foram críticas. Merkel acaba por confirmar as suspeitas de que lhe falta densidade, sendo mais uma figura da enorme ressaca daquela condição romântica que acabou por conduzir a Europa a um dos períodos de maior degradação e terror, marcando o fim das utopias.
Queda de reputação abrupta
Por sua vez, Merkel, que talvez em nenhuma outra época pudesse ter gozado de tamanha popularidade, provou ter a astúcia de encarnar essas limitações e delas extrair um carácter. Entre 2005 e 2021, a política era uma coisa bastante enfadonha, mas estava reservada aos adultos. Depois, com o triunfo de Donald Trump, chegou a era dos fedelhos, de um populismo cretinizante, e quando havia novamente um cheiro a sangue no ar, Merkel despedia-se deixando a impressão de que tínhamos sido felizes com ela sem o saber. Na Alemanha, os seus índices de popularidade eram tão altos quando deixou o cargo que a campanha para a substituir foi essencialmente um concurso entre candidatos para ver quem conseguia imitar melhor os seus modos circunspectos. No entanto, nos três anos que se seguiram, a dependência de países cada vez mais autoritários – a Rússia para a energia, a China como parceiro comercial e, num sentido diferente mas, especialmente agora, preocupante, os EUA para a defesa – deixou a Alemanha, e mesmo a Europa, numa posição extremamente vulnerável.
Em certo sentido, Merkel saiu apenas a tempo de não ser empurrada de forma tudo menos graciosa, e alguns analistas, como Richard J. Evans num excelso comentário nas páginas do The Guardian, referem que são raros os exemplos de políticos que sofreram uma queda de reputação tão abrupta mal deixaram as funções de liderança. Pouco mais de dois meses após a sua saída do cargo, em dezembro de 2021, Putin ordenou a invasão da Ucrânia, dando início a um conflito que ainda está em curso e ameaça agravar-se. Merkel foi, então, alvo de fortes críticas por ter aumentado a dependência alemã do gás natural russo através da construção do gasoduto Nord Stream, entregando a Putin uma poderosa arma potencial de coerção contra o Ocidente. E só se percebe que ela parece ter noção que deixou o flanco exposto, pelas tantas páginas do livro que dedica às questões ambientais, justificando a decisão de encerrar as centrais nucleares alemãs após o acidente de Fukushima em 2011, e assim privando a Alemanha de uma alternativa fundamental aos combustíveis fósseis. Por outro lado, a sua declaração de que «a Alemanha e Israel partilham os valores da liberdade, da democracia e da observância da dignidade humana» não tem como escapar a ser encarada como um sinal da putrefação dos tão apregoados “valores” de que o Ocidente se foi servindo para defender os seus interesses geoestratégicas, indo ao ponto de justificar campanhas genocidas como a de Netanyahu em Gaza.
Mas a decomposição acelerada a que o quadro de noções e expectativas de Merkel estão sujeitos ainda não chegou àquele ponto em que uma autobiografia como esta se mostra um documento quase patético. O pior é que a ex-chanceler alemã parece alheada dos fatores que levaram à recessão da economia alemã, e como é indesmentível que isso atesta o colossal fracasso da sua liderança, precisamente por não ter reconhecido como a Alemanha continuava a vender as ilusões do crescimento infinito, sem investir na modernização e num conjunto de reformas do seu tecido empresarial de forma a adaptar-se à era pós-industrial. Assim, longe de ser um relato de olhos postos no futuro, esta é uma autobiografia caduca, e serve para comprovar o desacerto de uma espécie de governanta, que apenas soube cumprir à risca aquilo que se esperava dela, mas que uma vez mais reforçou esse grau de auto-comprazimento e presunção, que inevitavelmente agora irão dar margem para um enorme ressentimento e desilusão, que já tem vindo a expressar-se num desavergonhado retorno dos ecos de um pulsão para a auto-mitificação, sempre às custas do sacrifício dos outros.