Domingo de manhã. À saída de casa, em direção ao estacionamento, do outro lado da rua, tudo se afigurava normal. Se tivesse de referir um elemento distintivo do dia, salientaria o facto de estar a chover. Ao destrancar a viatura, o seu olhar foi atraído pelo buraco que na porta lateral de trás substituíra o local onde antes existira um vidro.
De viva-voz ou nos meios de comunicação, raro é o dia em que não se é confrontado com relatos de furtos e roubos. O vandalismo, muitas vezes associado a estes atentados à propriedade, dada a regularidade que tem, já é uma “não notícia”. Mesmo quando relatado, já nem a atenção atrai. Cada indivíduo tende a ficar anestesiado, imune às situações vividas pelos outros. Até ao dia em que veste o papel de vítima.
Ficou em choque. Nunca tal lhe tinha acontecido. O motivo parecia ter sido o furto, como se intuía pelo conteúdo do porta-luvas espalhado pelo chão da viatura. Nada havia sido levado. O facto é que, por princípio, nunca deixava no interior da viatura objetos de valor.
Passado o impacto inicial, dirigiu-se ao posto local da GNR, para reportar a ocorrência. A militar de plantão, informada da razão que o levava ao posto naquela manhã, perguntou-lhe se ele queria efetivamente apresentar queixa. Argumentou que o posto já tinha sido informado da ocorrência de meia dúzia de situações semelhantes na localidade e a formalização de uma denúncia não iria ter qualquer consequência, porque não havia suspeitos, muito menos alguém apanhado em flagrante delito. Notava-se, à distância, que era nula a sua vontade em lavrar o auto de denúncia.
“A senhora desculpe, a denúncia não irá resolver o meu problema. Mas se não for registada o que me aconteceu não terá existido, nunca. É por falta de registo de denúncias que atualmente as perceções dos cidadãos sobre criminalidade não coincidem com as estatísticas existentes.”. Esta resposta funcionou como o “santo-e-senha” que abriu a porta do posto e lhe possibilitou o acesso ao interior das instalações onde, durante cerca de meia hora, o auto de denúncia foi lavrado.
Mais tarde, passando em revista o que acontecera ao longo dessa manhã, procurou encontrar justificação para a atitude inicial da militar. Olhando pelo lado positivo do comportamento humano, possivelmente ela, sabendo de antemão que o referido auto não traria ao cidadão efeito concreto e direto para o seu problema, teria procurado, por essa via, cortar pela raiz a formação de qualquer expetativa de um desfecho positivo. Pelo lado mais negativo, se a militar pudesse obviar a que o auto fosse lavrado, o seu dia ficaria muito mais leve, pois durante o tempo em que, lentamente, pressionava as teclas do computador, lavrando o referido auto, as comunicações dos carros de patrulha em serviço não pararam de reclamar a sua atenção e ação.
Fosse qual fosse a motivação da militar, o facto é que ele, a vítima, fizera o que deveria ser feito. Contribuíra para a existência de estatísticas criminais mais fidedignas e, por essa via, para a possibilidade de poderem vir a ser formuladas políticas de combate ao crime mais focadas e eficazes.