- Todos sabemos, há já demasiado tempo, que a Justiça tem problemas de diferente cariz no que respeita ao seu funcionamento e a alguns dos seus resultados.
Se, mesmo que estranhos ao mundo judiciário, lermos, todos os dias, por exemplo, uma resenha de imprensa dedicada à Justiça, rapidamente nos inteiramos de que os problemas noticiados e comentados, são, em geral, os mesmos de sempre.
Acontecem entre nós, acontecem na maior parte dos países europeus, acontecem, como ultimamente se tem visto melhor, nos EUA.
A corroboração da constância destes problemas, não apenas entre nós, mas, também, em outros países não deverá, no entanto, impedir-nos de procurar aperfeiçoar o nosso sistema da Justiça.
Continuar, porém, a debater o funcionamento da Justiça, à margem da discussão mais abrangente da crise de credibilidade que afeta a intervenção do Estado nos modelos demoliberais que organizam as sociedades ocidentais, pode ajudar, é certo, a remendar um ou outro aspeto da atividade judiciária, mas, convenhamos, daí não passará.
- Se, por exemplo, quisermos construir um veículo capaz de se mover em qualquer chão temos de o idealizar e projetar de modo diferente do que o conceberíamos se desejássemos que ele se destinasse a viajar apenas nas autoestradas e nas estradas nacionais.
Isto significa que é função que deve determinar a estrutura do aparelho que a executa e não o contrário, como, por vezes, parece decorrer dos discursos de alguns dos responsáveis pela Justiça e os seus órgãos.
Se quisermos que a Justiça penal seja o veículo privilegiado para lidar com a corrupção, temos de avaliar se os instrumentos legais de que ela dispõe – e constitucionalmente pode dispor – são aptos e indicados para realizar tal função.
A prioridade dada à Justiça penal na abordagem da criminalidade ligada à corrupção comporta, em si mesma, uma leitura política própria da sociedade e do papel que a intervenção do Estado nela terá de ter.
Tal leitura traduz-se, desde logo, na aceitação de que a corrupção acontece antes de a Justiça penal ser chamada a intervir.
Pelo menos enquanto encararmos a Justiça penal como uma resposta do Estado, legitimada, no essencial, pela prévia ocorrência de factos que a lei considera como crimes.
Ainda não estamos, com efeito, próximos das teses de repressão do “pré-crime”, expostas no filme denominado “Relatório Minoritário”, inspirado na obra de Philip K. Dick.
A opção centrada em medidas privilegiadamente reativas, como são as que a Justiça penal pode usar, comporta, contudo, riscos sociais e políticos graves.
A velocidade da informação atual esmaga, facilmente, a demorada resposta reativa da Justiça, desvalorizando o seu minucioso e exigente trabalho de investigação e os seus resultados tardios, que, mesmo quando bem concretizados, acabam por ser, assim, por já extemporâneos, socialmente indiferentes.
Para que a Justiça penal pudesse ser mais eficaz na contenção e, mesmo, na repressão do fenómeno corruptivo, teria de se libertar, pois, de um conjunto de apertados nós de segurança que a Constituição criou para, precisamente, impedir abusos da intervenção do Estado sobre os cidadãos.
Estarão as nossas sociedades dispostas a isso?
Em suma: centrar, primordialmente, na Justiça penal o encargo de travar o desenvolvimento da corrupção acabará, inevitavelmente, por ir erodindo princípios que uma Democracia e um Estado de Direito não podem tolerar ver questionados ou olvidados.
Não por acaso, são os que abominam a Democracia e os seus direitos, liberdades e garantias que andam sempre com a corrupção na boca.
Quer isto dizer que estamos condenados a viver com níveis de corrupção, cujos custos são incomportáveis para uma sociedade que, como a nossa, necessita, urgentemente, de tirar da miséria e da pobreza uma parte muito considerável dos cidadãos?
Não, não é isso que se quer dizer.
Simplesmente se quer salientar que é noutro plano, na ampliação e na modernização dos mecanismos de aconselhamento, controlo prévio e concomitante da ação do Estado e da Administração Pública (AP) e local, que deve incidir, primordialmente, uma política que queira, de facto, reduzir a corrupção.
- Uma política que não queira limitar-se a reagir à corrupção pontualmente verificada tem, previamente, de focar-se em criar e melhorar procedimentos tendentes a certificar a correção formal, mas também substancial – isto é a economicidade – da despesa do Estado e das autarquias.
Nesta perspetiva, é, pois, fundamental que as decisões com relevo financeiro – políticas e administrativas – possam ser prévia e/ou concomitantemente escrutinadas por (equipas de) peritos pertencentes à AP, mas que são dela independentes.
A decisão política que gera despesa deve, pois, ser sempre apoiada num parecer emitido e assinado por peritos responsáveis (identificáveis) e pertencentes a uma entidade independente, no seio da AP.
Tal parecer, necessariamente obrigatório a partir de determinado montante da despesa, deve analisar, previamente, por conseguinte, as diferentes vertentes de legalidade da decisão política em causa.
E, note-se, quando se fala em peritos da AP, não é por acaso ou preconceito: as opiniões de entidades privadas não geram, em princípio, responsabilidades públicas para quem as emitiu, nem com elas se podem justificar decisões políticas que atentaram contra o bem comum.
Os pareceres emitidos pela AP, pelo contrário, geram responsabilidade para quem os subscreve se forem contrários à lei.
Não devendo tal parecer ser coercivo para o governante que venha a decidir – há, tem de haver, uma margem de discricionariedade decisória que é inerente ao exercício do poder político – quando não adotado, deverá, no entanto, constituir tal decisor político na obrigação de justificar, previamente, porque o não seguiu.
Assim, se acrescenta transparência e rigor no processo decisório e se pode obviar a que decisões formalmente corretas, mas financeiramente ruinosas para o Estado, venham a ser tomadas, sem que ninguém arque, depois, com a responsabilidade por eventuais perdas desastrosas.
Esta atividade de aconselhamento e controle poderia, porventura, ser realizada através de uma reformulada e reforçada entidade como o Tribunal de Contas.
Todavia, como tal órgão não foi pensado – e bem – para exercer funções de consultadoria e apoio às decisões políticas, esta competência deveria ser atribuída, com vantagem, aos órgãos de controlo interno.
Isto, claro, se, devidamente, reorganizados nos seus estatutos, de modo a revigorar a sua autonomia face ao poder executivo e se dotados de um corpo de técnicos altamente especializados e bem remunerados.
- Como a vida tem demonstrado, é no âmbito das mais importantes decisões políticas e financeiras que, coincidente ou paralelamente, se desenvolvem os procedimentos corruptos e corruptivos mais importantes e danosos.
E, note-se, usamos aqui o termo corrupção, não no seu mais restrito sentido técnico-jurídico, mas na mais ampla e popular noção, que qualifica toda a má gestão dos dinheiros públicos, quando realizada dolosamente em detrimento do bem comum e em favor dos interesses dos que os gerem ou dos com eles negoceiam.
É, pois, numa opção por maior apoio e rigor ao processo decisório e no aperfeiçoamento dos seus instrumentos de consulta e controle, que, em nossa opinião, deve incidir o esforço de robustecimento da política democrática, visando evitar a corrupção.
De outro modo, pressionados por populismos vários – e, como aconteceu já, com as políticas de luta contra a droga e o terrorismo – assistir-se-á, agora em nome do combate à corrupção, à tentação de, uma vez mais, se descaracterizarem princípios constitucionais essenciais.
E, pior, nem assim a corrupção relevante será bloqueada antes de suceder, nem os perpetradores de tais crimes virão, depois, com a eficácia exigível, a ser responsabilizados criminal, financeira e civilmente com sucesso.