Um livro que está para lá do luto, a história de uma mulher fragilizada, saudosa, carente e neurótica que acabou de perder o marido. A sua dor é um cântico indecifrável, ainda que harmonioso.
A família mais chegada está longe e por isso esta mulher vive sozinha. Embora não se lamente, nem seja dada a sentimentalismos, nota-se que se sente entregue totalmente a si própria e a uma solidão que a consome. Em parte acorrentada pelo desespero e pela sensação de impotência perante o passado. Mesmo que nunca em tom de reprovação, esta mulher está sempre a pôr em causa as atitudes de todos. Das filhas, do marido, da irmã, das cunhadas, das velhas tias, das primas.
Até que ponto conhecemos os nossos filhos, e o que mudaríamos no nosso percurso, ou em que silêncio enterramos a nossa juventude, serão talvez as questões basilares que percorrem toda esta curta, mas desconcertante narrativa.
A personagem principal é uma viúva que mora num prédio banal em frente a uma paragem de elétrico. Geralmente anda de roupão e passa a vida agarrada ao telefone. É mãe de duas filhas que têm vidas muito diferentes uma da outra.
Não temos nomes para nenhuma das personagens, a não ser o do marido, que se chama Jacques. As filhas são-nos dadas a conhecer simplesmente pelas suas características e feitios e pelo lugar onde vivem. Temos a filha independente e cheia de personalidade de Ménilmontant e a filha a viver na América do Sul casada, com filhos, e que conduz.
A filha de Ménilmontant é a que nem tem filhos, nem é casada, e é ela a quem a mãe vai pedir ajuda aquando de uma segunda operação.
A viúva é muito hábil ao pensar em coisas em que não se devia meter. A tentar entender coisas que a ultrapassam. A tentar recuperar o tempo para sempre perdido. E, a cada página, sem saber bem como, o leitor sente-se seduzido por esta sua habilidade.
Para esta mãe, as duas filhas pensam também demasiado, se bem que ela acredita que a filha casada pensa ainda mais do que a outra, embora consiga disfarçar melhor porque tem o marido e os filhos a seu cargo.
Depois de Jacques morrer a viúva passa a olhar para as duas filhas de uma maneira diferente. Começa a encontrar nelas certos traços e pequenos vícios do marido. Uma, assobia sem fazer som como o pai e cruza as mãos como ele por detrás das costas, a outra de repente tem a cara redonda e as bochechas de Jacques. Como está sempre a tentar encontrar sinais do marido nas suas descendentes, inevitavelmente dá por si a comparar insistentemente as duas. Esta comparação, se bem que sem nenhum julgamento, entre o que as duas pensam e a maneira como se comportam, leva-a a questionar e a pôr em dúvida também o seu próprio caminho.
Parecem muitas vezes infinitos, ininterruptos e reincidentes os seus pensamentos. Temos a sensação de que não há força nem travão que os impeça de se revolverem. Muitos chegam a ser por vezes demasiado repetitivos, emaranhados, demasiado contemplativos, mas por serem traduzidos para a escrita num tom tão coloquial, fluído e ameno, o leitor pode perfeitamente adotá-los como seus. Encarrilá-los no seu ritmo. Em muitos momentos sentimos ter de andar em bicos de pés para a certa altura não tropeçarmos neles. Porém, estes pensamentos obsessivos, além de conferirem um ritmo alucinante ao enredo, inculcam uma espécie de eco nos nossos próprios pensamentos. Somos capazes de senti-los alongar-se, crepitando dentro de nós.
Chantal Akerman, brilhante cineasta, autora de mais de 40 filmes e de uma série de videoinstalações presentes em diversas galerias emblemáticas espalhadas pelo mundo, parece servir-se destas repetições como uma estratégia para que o leitor fique agarrado à memória desta viúva, ao mesmo tempo acabando por se abstrair de si mesmo.
É certo que as memórias desta família se compõem, como as de tantas outras, por camadas de histórias. Há muitas, no entanto, que por algum motivo ficaram por contar e delas só vamos tendo alguns flashes. É o caso do episódio da circuncisão do neto da narradora, ou das canções infantis em iídiche. São estas pontas soltas que nos vão indicando que estamos perante uma família judia que terá passado por duros e trágicos momentos.
No posfácio, Cristina Fernandes sublinha que, “de um modo mais velado e mais lento, vai-se insinuando a questão judaica, essa história longínqua e eterna. Naquela noite em que Jacques diz à mulher que vai morrer, não o diz em francês, mas em iídiche (a nossa língua), e a carga que essa língua transporta é tal que ela sente um baque no coração. E depois quando já não há nada a fazer, a filha de Ménilmontant canta-lhe canções nessa língua recuada e isso dá-lhe algum alívio. E então sabemos que há, que sempre houve, qualquer coisa ainda mais grave, uma ferida antiga escondida. E fala-se dos familiares perdidos nos campos (essa palavra interdita é dita apenas uma vez) por onde essa mulher passou e percebemos que ela tem atrás de si tantos destroços (tínhamos tantos projetos em conjunto a minha mãe e eu… não consigo impedir-me de pensar como seria a vida se tudo aquilo não tivesse acontecido) que é difícil compreender como consegue viver; essa mulher que sempre foi um enigma para a filha porque sempre se negou a falar do seu passado de trevas torna-se um enigma para nós.”
Chantal Akerman nestas camadas de histórias tão compactas, enigmáticas e quase segredadas entre si cria uma bolha de intimidade única. Uma intimidade que nos “aquece os ossos”. Esta é uma expressão recorrente usada pela personagem principal ao longo do texto. Esse enigma a que Cristina Fernandes se refere é a solidão esquartejada, as rotinas dos personagens, os seus desafios, instintos, desejos, receios, os seus pressentimentos, o fatalismo que os envolve. No fundo, basicamente todo o quotidiano. Porque é do quotidiano que Akerman sempre se ocupou. E, por isso, não se pode encarar este livro sem o ver espelhado na sua obra cinematográfica e vice-versa. Porque em ambos encontramos a mesma tensão, a mesma imagética, a mesma plasticidade, a mesma rede de planos, de uivos, de sombras e silêncios.
É sabido que a grande maioria dos seus projetos cinematográficos põe em foco o quotidiano. É este sem dúvida o tema mais recorrente na sua obra. Um tema que a cineasta desde sempre condimentou com um olhar complexo, delicado, criativo e com uma profunda dimensão intelectual.
São os pequenos e os aparentemente insignificantes gestos, aqueles que mais prenderam a sua atenção e que também mais se evidenciam neste livro.
Geralmente nos seus filmes o tempo, por ser de comunhão, é pausado. Quase esculpido. Não há muitos espaços, nem muitos personagens. Os movimentos de câmara são lentos, parecem resvalar sem aparente pressa, como roseiras na direção do sol em dias encobertos, e debruçam-se bastantes vezes numa domesticidade trivial. Também neste livro, os espaços são reduzidos e parecem saídos de pequenas molduras. O quarto do lar onde Jacques terminará os seus dias assemelha-se a uma desbotada imagem a arfar num porta retratos antigo, assim como a sala onde a viúva passa grande parte das horas. De igual modo, os personagens centrais são escassos. Apenas quatro. Os pais e as filhas.
As palavras neste caso, funcionam como uma primavera longínqua, como uma lente invisível que se demora por tempo indeterminado por dentro dos ângulos mais caudalosos de uma saudade quase sufocante. Ângulos que nos convidam a entrar numa retrospetiva que vai desde o primeiro apartamento onde os personagens moraram com poucos recursos até aquele espaçoso andar agora quase vazio, mas carregado de boas recordações. Uma retrospetiva que vai do Taunus de duas cores ao confortável Audi. Que vai do tempo do nazismo até uma Bruxelas segura. Se nos demoramos nesta dinâmica, percebemos facilmente que a distância que separa os dois carros ou os dois apartamentos, ou o tempo entre o flagelo na Polónia e a paz em Bruxelas é monstruosa. Mas nela a eternidade parece enfiar-se perfeita como uma luva.