Israel foi visto como um lugar espiritual, pátria exilar de um povo espalhado pelo mundo e sempre alvo de perseguição. Hoje, depois da solução final nazi, há mais judeus do que nunca em todo o mundo, mas o próprio judaísmo tem vindo a ser instrumentalizado novamente, agora por um Estado que tem procurado levar a cabo uma “nacionalização de Deus”.
Quem procura arrancar teses conclusivas à História não demora muito a encontrar-se num terreno cediço, a ver-se engolido como se caminhasse num campo de areias movediças. O passado acumula-se nas nossas costas, mas furta-se a uma interpretação única. Por isso, como assinala Walter Benjamin, articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo ‘tal como ele foi’, mas, antes, apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge num momento de perigo.
Como se lê em The Illustrated History of the Jewish People, editado por Nicholas Lange, “todas as gerações de historiadores judeus depararam-se com o mesmo problema: como recontar e adaptar a história para satisfazer as necessidades da sua própria situação”. Neste sentido, cumprem com aquele propósito que Benjamin reconheceu como a tarefa essencial de cada época, que, para assumir uma direção contra os constrangimentos que lhe são impostos, “deve tentar sempre arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para a dominar. Todos os povos, nações ou religiões nalgum momento tiveram de falsificar certos elementos do passado histórico, isto para que este pudesse ser apercebido numa fórmula narrativa.
É por esta razão que, sempre que surge uma disputa e se procura refutar o adversário recorrendo às fontes documentais, muitas vezes o historiador dá-se conta de como, de algum modo, mesmo o passado é tudo menos extático, e a todo o momento surgem mitos que parecem persistir teimosamente, por mais vezes que sejam desmentidos, enquanto certos factos indubitáveis nunca conseguiram ganhar força. No Antigo Testamento, Canaã, a antiga região entre o mar Mediterrâneo e o mar Morto, designada como a Terra Prometida dos judeus, é o lugar que permitiu aos hebreus porem fim ao seu êxodo, tendo sido ali que David assegurou ao seu povo um reino glorioso. A partir de cerca de 1000 a.C., ele e o filho, Salomão, reinaram por um largo período glorioso ao longo de um território que abrangia quatro reinos derrotados, estendendo-se do norte do rio Eufrates até ao sul do deserto do Negev.
Os arqueólogos teriam fixada aquela data a partir de uma inscrição num portal da cidade egípcia de Karnak, que enumera as conquistas militares do rei Shoshenq (que se pensa ser o mesmo rei mencionado na Bíblia como Shishak). A Monarquia Unida, como é conhecida, representou a idade de ouro da antiga Israel. O mais certo, no entanto, é que não tenha durado mais do que uma ou duas gerações. De qualquer modo, o seu legado persiste até aos nossos dias, e, de acordo com Israel Finkelstein, professor emérito de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv, se para os judeus, David “representa a soberania territorial, a lenda do império”, para os cristãos, está “diretamente relacionado com Jesus e com o nascimento do cristianismo”, ao passo que para os muçulmanos, é um profeta que precedeu Maomé. Em declarações à The New Yorker, Finkelstein assinala como a história de David “é a coisa mais central da Bíblia e da nossa cultura”.
A história de David
No longo ensaio que Ruth Margalit escreveu para as páginas daquela revista norte-americana, esta assinala como, na longa guerra para se reconciliar as narrativas bíblicas com aquilo que foi sendo apurado a partir dos arquivos historiográficos, a história de David surge como o primeiro elemento em que parece ser possível enraizar aquelas extraordinárias ficções em algo de palpável. Se não há qualquer registo arqueológico de Abraão, de Isaac ou de Jacob, nem a Arca de Noé se sustenta como mais do que uma pura fábula, se nem Moisés deixou um rastro verificável, e não parece que Josué tenha derrubado as muralhas de Jericó, que, ao contrário do que se lê no Livro dos Livros, caíram séculos antes, provavelmente na sequência de um terramoto, o primeiro grão de verdade que se encontrou naquelas páginas ficou a dever-se às investigações de um arqueólogo israelita que, em 1993, trabalhava perto da fronteira síria, tendo-se deparado com um fragmento de basalto do século IX a.C. com uma inscrição em aramaico que mencionava a “Casa de David”.
Esta é a primeira referência histórica a uma das figuras fundamentais da Bíblia. Não é muito, mas é o primeiro elemento documental que parece suportar a tese de que David não terá sido apenas um antepassado central naquela mitologia, aparecendo até aqui como o único que tem a sua existência apoiada em algo de substancial. Mas os arqueologistas admitem que não passa de um indício, e que seria difícil extrair daquela referência algo de definitivo. A Jerusalém do século X a.C. permanece um enigma, tendo providenciado muitos poucos elementos aos historiadores, sendo considerada um vazio arqueológico. “Posso pegar numa caixa de sapatos e colocar lá dentro tudo o que temos desse período”, disse Yuval Gadot, arqueólogo da Universidade de Telavive, a Margalit.
Na Bíblia, David é o género de personagem imensamente cativante, que se diria que salta da página, sendo ao mesmo tempo uma figura inspirada e engenhosa, mas cheia de falhas, capaz de uma violência indescritível, mas também de remorsos e de exemplos de afeição e ternura. Isto faz dele “talvez o primeiro anti-herói da humanidade”, sugere Margalit. É um belo pastor, que além de uma pontaria danada, capaz de deitar por terra um gigante, revela talento com a lira e na sedução de mulheres, sendo que depois de se ver ungido por Deus para substituir Saul, o primeiro rei de Israel, cujo curto reinado foi marcado por episódios de rebelião, a certa altura David engravida uma mulher casada, enviando o marido dela para morrer em combate.
Muitos historiadores, e em particular aqueles que alcançam maior prestígio, não demoram a dar-se conta de que só vingam aquelas teses que levam em conta a tradição oral, como se esta fosse um regime lacunar, mas em alguma medida fiel aos acontecimentos históricos. Os séculos perdem-se numa névoa cerrada, mas, aqui e ali, foi possível encontrar menções à cidade filisteia de Gate, destruída no final do século IX a.C., e que se considera que pode apontar para as origens da história de David.
Nómadas beduínos
Nas conjeturas que Israel Finkelstein se permitiu fazer deste, fazendo sobressair os elementos idiossincráticos desta personagem, terão feito dele um eminente arqueólogo bíblico, mas, como vinca Margalit, quando começou a sua investigação na área, estava menos interessado na Bíblia do que nos padrões de migração. “Em 1993, Finkelstein era um professor recém-empossado na Universidade de Telavive, tinha quarenta e quatro anos e era conhecido como uma espécie de iconoclasta. Estava a trabalhar num livro intitulado Living on the Fringe, que abordava questões relacionadas com a habitação humana no antigo Levante meridional – particularmente em Canaã, o local onde hoje se situa Israel. Finkelstein argumentou que os primeiros colonos chegaram ali em resultado de mudanças internas na região; as sociedades nómadas tornaram-se sedentárias ao longo de algumas gerações durante períodos de comércio bem-sucedido, depois desenraizaram-se e voltaram a instalar-se. Os israelitas, segundo ele, eram ‘de origem local’ – ou seja, nómadas beduínos.”
De tempos a tempos, vão surgindo nos escaparates e alcançam maior ou menos eco nos debates públicos esses livros que desafiam as narrativas bíblicas e as crenças populares que descendem da tradição oral, mas o que distingue a disputa sobre certos episódios ligados às origens das grandes religiões monoteístas, seja nas controvérsias ligadas à fuga do Egito ou ao Jesus histórico, é o facto de estas não poderem ser desligadas dos conflitos de ordem geopolítica. A Declaração de Independência de Israel afirma: “Depois de ter sido exilado à força da sua Terra, o Povo manteve-se fiel a ela durante toda a sua dispersão e nunca deixou de rezar e esperar pelo seu regresso a ela”. A ideia de um exílio injusto e de um regresso legítimo está na base da convicção, tanto dos judeus como dos palestinianos, de que cada um tem direito à terra.
Sendo o registo histórico tão fragmentado e incompleto, pelo menos começa a haver algum consenso entre os especialistas de que tantos dos mitos em que se sustentam as teses sionistas são puras mistificações. Hoje, já é do conhecimento comum que não houve uma expulsão súbita de todos os judeus após a queda de Jerusalém e da destruição do Templo no ano 70 d.C., como é sabido que os judeus modernos devem a sua ascendência tanto aos convertidos do primeiro milénio e do início da Idade Média como aos judeus da Antiguidade. Por outro lado, têm vindo a ganhar terreno investigações que procuram demonstrar como muitos dos atuais palestinianos podem legitimamente afirmar que descendem dos antigos judeus. Mas, se estas noções têm vindo a tornar-se comuns entre os historiadores, devido ao incessante conflito e à violência e aos massacres genocidas do Estado de Israel em Gaza e na Cisjordânia, sempre que estas teses passam as fronteiras do meio académico, conseguem provocar grande controvérsia, e um dos autores que melhor tem sabido fazer furos nas teses sionistas e denunciar a forma como a propaganda israelita se apropriou do mecanismo mítico para reivindicar a legitimidade das suas políticas colonialistas, é Schlomo Sand.
Este historiador israelita, professor emérito na Universidade de Tel Aviv, viu dois dos seus livros passarem meses nas listas dos mais vendidos em Israel e ser traduzido em vários países, combinando teses bem abalizadas no trabalho de outros colegas com interpretações bastante polémicas e que o colocam na linha daquela tarefa que Benjamin reconhece ao historiador, no sentido de “fixar uma imagem histórica do passado tal como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico no momento de perigo”. Assim, e se muitos têm procurado desmontar as suas teorias, é evidente que estas assumem preponderância pelo empenho em pôr fim à forma como são instrumentalizadas e atacadas por Israel e pelo Ocidente as populações muçulmanas que resistem e aparecem como obstáculos aos seus interesses na região.
Sand assume abertamente que o seu objetivo é arrancar pela raiz a as tão falíveis teses históricas e os argumentos de ordem mística de que se servem os sionistas para reclamarem o seu direito a impor um Estado-nação norteado por princípios de exclusão étnica, e tem assim procurado demonstrar que os judeus não constituem sequer “um povo” com um passado racial ou biológico comum. Entre nós, estão publicados os livros Como uma Raça foi Imaginada. Breve História da Judeofobia (2020), Como a ‘Terra de Israel’ foi Inventada (2012) e ainda Como Deixei de Ser Judeu (2013), os três com selo da KKYM+P.OR.K. E num recente ensaio – Economia Política do Mito (ed. Contraponto), Pedro Levi Bismarck partiu das teses de Sand para demonstrar como o judeu tem sido também ele uma figura instrumental na disseminação dos nacionalismos europeus, e na propaganda belicista que, em torno de noções como “Democracia” e “Liberdade”, permite uma intervenção musculada para fazer valer os interesses ocidentais no Médio Oriente, demonstrando, por outro lado, como Israel se apropriou do mecanismo mítico do fascismo e do nazismo, numa lógica de sobre-identificação mitómana para degradar os palestinianos e outras populações nas Nações que à volta se opõem à sua lógica expansionista.
Seguindo as teses de Sand, Bismarck mostra como o Mito de Israel se funda na tal fantasia da unidade biológica do judeu, estabelecendo uma co-pertença entre povo, território e religião. “O judaísmo oferece o suplemento moral-religioso decisivo à relação inexequível entre raça e terra. E, por isso, Sand pode falar amplamente de um processo histórico de ‘nacionalização do judaísmo’ ou de ‘nacionalização de Deus’.” Ora, um dos pontos decisivos da argumentação de Sand passa por desmontar a ideia de que o judaísmo sempre se fundou na ideia de que Israel fosse um lugar-nação ao qual era preciso regressar. Pelo contrário, ele entende que o messianismo assume um apelo tão decisivo por ser uma pátria fundada no exílio, e que por não se fixar numa porção de Terra, persiste como um lugar espiritual. Este historiador israelita contesta a ideia de que sempre houve um desejo histórico enraizado nas comunidades judaicas de regresso, demonstrando como as primeiras iniciativas sionistas do final do século XIX até à II Grande Guerra não colhem grande sucesso, preferindo estas comunidades a integração nas culturas nacionais europeias. Isto mesmo está em linha com a noção que sustentou durante as últimas décadas esse desafio tão particular que os judeus representavam para o Estado-nação europeu, e que foi expresso de forma bastante poderosa pelo dramaturgo alemão Heiner Müller numa entrevista. “Os problemas começam quando uma sociedade se torna móvel. Os judeus não tinham um lugar seu, e por isso é que inventaram uma pátria que era uma utopia, o ‘lugar inexistente’. Mudaram a pátria do espaço para o tempo. Os nómadas movem-se ciclicamente de lugar para lugar e conservam uma conceção mítica do mundo. Os judeus não tinham um lugar, e portanto não tinham um presente. Quem não tem lugar também não tem tempo. Isso apela para um tempo diferente, o messiânico. Os judeus não tinham um lugar para os mortos. E por isso podiam conversar com os seus ancestrais – o resultado é a ideia de ressurreição. Falamos do princípio de uma estranha forma de abstração que é a congruência entre o anti-semitismo e o anti-intelectualismo. Todos os intelectuais são, na realidade, judeus. A afinidade entre os judeus e o dinheiro também está ligada à mobilidade. O dinheiro e o capital também não têm um lugar. Os judeus só poderiam sobreviver ligando a sua estrutura deslocalizada, o seu movimento e revolta, a uma estrutura monetária que fosse igualmente móvel e flexível.”
Numa outra entrevista, Müller procura demonstrar como os judeus significavam o inimigo natural dos fascismos e nacionalismos, uma vez que não podiam ser assimilados, e encarnavam, por isso, uma resistência. “Os judeus serviam também como álibi, uma vez que para uma grande parte da população eles eram os capitalistas, um catalisador para todas as energias anticapitalistas, da esquerda à direita.” Ora, esta ligação entre os judeus e o capitalismo, como o explica o dramaturgo alemão, prende-se em si mesmo ao anti-semitismo ocidental, e que passou por uma forma de repugnância, sendo que, na Idade Média, só aos judeus era permitido cobrar juros, dado que, aos olhos da Bíblia, essa atividade era anticristã. “Então, os judeus abriram bancos e casas de empréstimos e ocuparam o lugar do inimigo ideal. Isso também explica porque é que a pulsão de base do nacional-socialismo era anticapitalista. Está demonstrado que, em 1933, as SA eram compostas, em grande parte, por antigos comunistas. Os nazis foram capazes de se apropriar de uma grande parte da energia da esquerda. Quando as Whermacht ocuparam Creta, Karl Korsch escreveu numa carta a Bertolt Brecht que ‘A Blitzkrieg é energia de esquerda reprimida’. O nacional-socialismo foi, efetivamente, a grande conquista história da classe trabalhadora alemã.”
Naquele poderoso testemunho histórico, Müller explica como a guerra-relâmpago nazi, foi – depois da revolução falhada de 1848 – a passagem dos trabalhadores alemães da condição de explorados para a de caçadores. “Com a guerra tornaram-se caçadores. Ouvimo-lo recorrentemente em qualquer café de esquina. A memória da guerra é a da maior experiência de liberdade. A guerra tomou o lugar da revolução, tal como, nos dias de hoje, a violência contra os estrangeiros tomou, uma vez mais, o lugar de uma revolução nunca levada às últimas consequências. Os judeus tornaram-se no inimigo ideal porque os verdadeiros capitalistas eram necessários, de facto, para financiar a guerra. Ficaram na sombra de Hitler, e por isso é que nunca ninguém lhes tocou.”
Assim, este testemunho também explica que, antes da actual degenerescência do sistema financeiro, que consumiu e instrumentalizou todas as políticas económicas nacionais, impondo uma defunção das democracias ocidentais pelo pacto que voltou a ser travado entre as grandes corporações e o Estado – que é a definição do fascismo –, antes de tudo isso, as indústrias alemãs serviram-se dos judeus como bode-expiatório, atuando na sombra, de modo a fazer prevalecer os seus interesses. Foram corporações que sobreviveram à II Guerra, e continuaram a prosperar dos dois lados do Atlântico, marcas como a Opel, Krupp, Siemens, IG Farben, Bayer, Allianz, Telefunken, Agfa, BASF e Varta, que apoiaram secretamente Hitler, e que continuaram a procurar subverter a ordem democrática. Antes de Éric Vuillard ter exposto de forma magistral em A Ordem do Dia estes enredos, já Müller tinha apontado como muitos dos arquitetos da solução que permitiria ampliar os lucros da indústria alemã nunca foram julgados, e persistiram ao comando dessas obscenas fortunas que se fizeram à custa do milagre económico que os campos de concentração e trabalho forçado significaram para a Alemanha nazi. “O gás para as câmaras não era fabricado pelas mesmas pessoas que depois o usariam. Era a indústria alemã que o fornecia. Os industriais alemães sabiam bem como seria usado. Essas pessoas ou se reformaram ou ocupam ainda posições de relevo na indústria alemã. Fala-se muito das bestas de uniforme SS, mas esquecemo-nos das bestas que estavam sentadas nos conselhos de administração. Não estou a dizer que as SS ou o exército eram inocentes, mas devemos compreender as ligações. Os campos de concentração foram um grande negócio para a indústria alemã. Muita tecnologia foi desenvolvida e testada nos campos. As tecnologias da morte sempre corresponderam ao estado da arte, e a tortura é uma das profissões mais velhas do mundo. Os ingleses amarravam os indianos aos canos dos seus canhões – ainda não tinham inventado nada melhor. Churchill estava no Egito quando a metralhadora foi testada pela primeira vez. Os ingleses usaram a sua tecnologia militar sobre os africanos. As novas tecnologias foram sempre testadas e implementadas contra as minorias, ou melhor, contra a ameaça de que viessem a tornar-se maiorias. Todas as tecnologias modernas orientadas para matar vão um dia ser utilizadas. O lançamento da bomba atómica sobre o Japão não tinha qualquer sentido do ponto de vista militar, mas foi um sinal enviado à União Soviética. O problema é que Auschwitz reduziu as inibições.”
Auschwitz e a indústria do Holocausto é ainda aquilo que permite que Israel prossiga a vertente de exploração colonialista que tantas nações ocidentais, hoje, patrocinam de forma mais ou menos dissimulada. É um eixo que significou também a captura do sentido histórico do papel que tiveram os judeus na diáspora, esses inimigos naturais dessa forma de predação de uns povos sobre os outros e que teve no seu centro os princípios da defesa do Estado-nação. Mas com o fascismo a adquirir, nos nossos dias, uma feição transnacional, Israel vem a significar a maior das ameaças à própria noção do messianismo. Se durante milénios os judeus foram “um distúrbio para o tempo”, como defende Müller, um distúrbio que tinha um efeito corrosivo sobre os Estados, as fortificações, os assentamentos populacionais, hoje o judaísmo, segundo as pretensões defendidas pelo movimento sionista, passou a ser mais um dos instrumentos de reforço dessa estrutura. “O único povo que ainda conserva esta estrutura móvel e sem Estado são os ciganos. A sua mera presença é uma provocação. Como expoentes da estrutura móvel, põem em causa tudo aquilo em que um Estado se baseia. A verdadeira tragédia é a criação do Estado de Israel. É uma reação ao anti-semitismo e aos pogroms, mas é uma armadilha. Israel transformou os judeus num povo promotor do Estado e levou-os a abandonarem a sua verdadeira estrutura, que é anti-Estado. Afinal, acabou por ser Hitler a transformar os judeus em romanos. Roma é o núcleo do Estado e as suas estruturas imperiais”.