As origens do conflito. Terra santa, guerra sangrenta

As origens do conflito. Terra santa, guerra sangrenta


“Nós, como nação, queremos que esta terra seja nossa; os árabes, como nação, querem que esta terra seja deles”, resumia Ben Gurion. Mais de cem anos depois, esta equação continua por resolver.


Porquê esta disputa encarniçada por um território pedregoso, estéril, quase hostil, quando mesmo ali ao lado há tantas zonas desabitadas? Por que implantou Israel uma espécie de sistema de Apartheid na Cisjordânia, quando o seu povo sabe, como nenhum outro, o que é ser perseguido e humilhado? É verdade que os judeus desprezam os palestinianos? E que os palestinianos invejam os judeus e a sua prosperidade conquistada à custa do esforço e do engenho? Por último, e para resumir: de onde vem este ódio mortal entre os dois povos?


Desde a aprovação pela ONU, em 1948, da Resolução 181, que previa a divisão do território da Palestina (53% para Israel e cerca de 45% para os palestinianos) que a região não mais conheceu a paz se não sob a forma de tréguas curtas e intermitentes.


A Resolução, promovida pelos Estados Unidos da América e apoiada pela União Soviética (Estaline via o sionismo como uma forma de enfraquecer a influência britânica na região), constituía o prémio que os judeus na Diáspora há muito desejavam. Os desastres da II Guerra Mundial e os crimes do nazismo justificavam todas as recompensas e mais algumas. Depois de séculos de exílio, de pogroms e de massacres, que haviam culminado no Holocausto, em que pereceram aproximadamente seis milhões de seres humanos, os judeus podiam finalmente regressar à terra prometida.
Mas os planos de divisão da Palestina esboçados pelos britânicos, por estranho que pareça, não tiveram em grande conta os cerca de 1,5 milhões de palestinianos que já ali viviam. Assim, reagindo à declaração de independência do Estado de Israel de 14 de maio de 1948, os países árabes vizinhos pegaram em armas e atacaram. E perderam em toda a linha: Israel não apenas manteve integralmente o território outorgado pela ONU como ainda ocupou cerca de 60% do que estava previsto para o estado árabe. Desde então, não pararam de chegar mais e mais judeus, que por sua vez iam galgando mais e mais terreno.

Um autocarro à hora de ponta O polaco Ryszard Kapuscinsky, possivelmente o mais célebre repórter do século XX, resumiu magistralmente a situação. “É nisto que reside o problema. Pode atirar-se uma pedra numa fronteira e a pedra chegará à outra atravessando a Palestina toda. De carro, pode percorrer-se a Palestina num dia. De Haifa a Tiberíades são sessenta quilómetros, de Telavive a Jerusalém são noventa. Percorrer toda a costa demora uma hora e meia”, lembrava Kapuscinsky no texto ‘Fedayin’, incluído em Cristo com Carabina ao Ombro (ed. Livros do Brasil). “Porque é que houve lutas tão violentas por cada pedra do Monte Hermon? Porque quem estiver no topo pode ver metade de Israel, metade da Síria, metade do Líbano e ainda uma grande parte de Jordânia. O Médio Oriente é uma zona extensa do mundo. No Médio Oriente há centenas de quilómetros de zonas desertas e despovoadas. Mas o lugar onde está a decorrer o drama, o lugar mais tenso e frágil, assemelha-se a um palco superlotado. As pessoas estão amontoadas como num autocarro na hora de ponta. Além disso, está calor e estão todas suadas e impacientes. Todos sofrem de falta de ar e de espaço. Pode viajar-se em paz no percurso entre uma ou duas paragens, mas basta que alguém toque no cotovelo do vizinho, que imediatamente se alastram clamores por todo o mundo.” Quem já andou num transporte público cheio e sem ar condicionado, num dia de calor sufocante, pode fazer uma pequena ideia do destino comum de israelitas e palestinianos. Apenas uma pequena ideia, porque o ódio entre estes dois povos condenados a roçar os cotovelos no autocarro é antigo, epidérmico e quase palpável.

Três religiões, um conflito inevitável? Thomas Ashbridge, historiador das Cruzadas, considera inevitável o conflito dada a confluência de três religiões na cidade de Jerusalém. “Tal como hoje acontece, Jerusalém tornou-se um foco de conflito na Idade Média precisamente por causa da sua incomparável santidade”, afirma em As Cruzadas – A Guerra pela Terra Santa (ed. Crítica). “O facto de ter um significado devocional crítico para os adeptos de três religiões diferentes, cada uma das quais acreditava ter direitos inalienáveis e históricos à cidade, significava que esta se encontrava quase predestinada a ser um palco de guerra”.
E, realmente, tanto as Cruzadas, com o seu cortejo de barbaridades, como os tempos atuais, parecem ser a prova disso.


Contudo, nem sempre árabes e judeus foram inimigos declarados. Outro historiador, Simon Sebag Montefiore, lembra que após a conquista da cidade santa aos bizantinos pelas tropas do califa Omar, em 637, a convivência parece ter sido relativamente pacífica. “Nunca saberemos o que foi exatamente que se passou naquelas primeiras décadas, mas as disposições – pouco rígidas – que vigoravam em Jerusalém e noutras cidades dão a entender que terá havido um surpreendente nível de entrosamento e relacionamento entre os membros dos três Povos do Livro”, lemos em Jerusalém – A biografia (ed. Crítica). “Inicialmente, os conquistadores muçulmanos não tiveram dificuldade nenhuma em partilhar os lugares de culto com os cristãos: a igreja de São João de Damasco foi durante muitos anos partilhada pelas duas religiões, e é na mesquita omíada dessa cidade que se encontra o túmulo de São João Baptista; por seu turno, a igreja de Cathisma, localizada fora da cidade, tinha um nicho de oração para os muçulmanos […]. Também os judeus acolheram bem os árabes, depois de séculos de repressão por parte dos bizantinos; terá mesmo havido judeus e cristãos nos exércitos muçulmanos”.

“Um abismo que nada pode preencher” Como se chegou então ao atual ponto de suspeição e intolerância? Àqueles que apontam a criação do Estado de Israel como raiz de todos os problemas, é bom lembrar que por essa altura o sionismo já levava mais de meio século de existência. Aliás, a primeira grande vaga de imigração de judeus para a Palestina iniciara-se em 1881 e em 1916 havia o projeto de instaurar na Palestina um “lar nacional judeu”, como lembra Georges Bensaussan em As Origens do conflito Israelo-Árabe (ed. Guerra & Paz). A vitória dos Aliados na Grande Guerra de 1914-18 levou à derrocada do Império Otomano, permitindo aos britânicos, responsáveis pela administração da Palestina, pôr em marcha esse projeto.


Mas a coexistência entre os árabes que ali viviam há várias gerações e os recém-chegados judeus iria revelar-se problemática. “Toda a gente se apercebe da dificuldade da questão das relações entre judeus e árabes”, dizia em privado Ben Gurion, futuro primeiro primeiro-ministro de Israel, em 1918. “Mas nem toda a gente vê que o problema não tem solução. Não tem solução nenhuma! É um abismo que nada pode preencher […] Nós, como nação, queremos que esta terra seja nossa; os árabes, como nação, querem que esta terra seja deles”. Em suma: a questão só se poderia resolver pela força. Continua Bensaussan: “Já em 1919, alguns sectores da sociedade árabe defendiam a violência e apelavam a uma ‘jiade’ contra a ‘invasão judaica’”. Estava dado o tiro de partida para um braço-de-ferro longo e implacável. Mais de um século volvido, é impressionante como os dois adversários ainda não se cansaram.