Cheira a peixe podre na terra dos morcegos

Cheira a peixe podre na terra dos morcegos


O Valência, um dos grandes de Espanha, vive uma crise horrenda e está nos lugares de descida.


O Valência é um dos mais galantes clubes de Espanha. Nasceu por via dos ingleses, como não podia deixar de ser, marinheiros que jogavam à bola no porto. Depois, com o passar dos anos converteu-se verdadeiramente num clube, com estatutos escritos em letra de forma, no dia 18 de Março de 1919, e aprovados por um grupo de jovens entusiastas que se reuniam no Bar Torino que já não existe mais. O primeiro dos escudos ainda não contemplava o morcego que hoje é marca da casa. Rat penat, chamam-lhe em valenciano, essa língua românica que se espalha pela Comunidade Valenciana, na comarca de El Carche e na Região de Murcia. E o morcego não está lá por capricho de alguém: é símbolo do bom presságio que conduziu o rei Jaime I na conquista da cidade à mourama no ano de 1238.
À sombra do morcego cresceu o quinto clube com mais sucesso em Espanha, tendo conquistado seis títulos de campeão, dois da Liga da II Divisão, oito Taças do Rei, duas Supertaças de España e uma Copa Eva Duarte, a competição que precedeu a Taça do Rei. Junta-se-lhe um bravo currículo internacional: três Taças UEFA (duas ainda com o nome de Taça das Feiras), uma Taça das Taças e ainda duas presenças na final da velha Taça dos Campeões e em dois anos consecutivos (2000 e 2001). Nobreza inequívoca. E nomes que ficaram para sempre na história do jogo: Alfredo Di Stéfano, Mario Alberto Kempes, Romário, Jorge Valdano e Didier Deschamps.
Ou seja, um clube que tem tudo para ser feliz e vive hoje nas vascas da agonia, instalado no 18º lugar de La Liga com 22 pontos, que o enviaria para a II Divisão se o campeonato acabasse agora.

Uma crise sem fim
A primeira grande crise pela qual o Valência passou surgiu em 1984. Obrigados a fazer obras no Mestalla (que se chamou Luis Casanova, em honra de Luis Casanova Giner, o mais emblemático presidente do clube, que viria a pedir que retirassem o seu nome do estádio, num gesto de tremenda parcimónia) para que fizesse parte do Mundial-82, os dirigentes valencianos viram-se a mãos com uma dívida de 2200 milhões de pesetas. Os anos posteriores foram de desinvestimento e com ele veio, inevitável, a II Divisão em 1986, coisa que já não acontecia desde 1931. No ano a seguir, o regresso. Sob o comando de Alfredo Di Stéfano. Parecia que a bonança estava definitivamente de volta. Puro engano.
Depois da constituição da SAD, o Valência Futbol Club passou a chamar-se Valência Sport Club (Valência Cé-Fé, como dizem os adeptos). David Roig chegou à presidência. Foi ele que levou o treinador Claudio Ranieri para o clube e a aposta revelou-se certa. A equipa cresceu como nunca, mas foram Héctor Cúper e Rafael Benítez a conduzirem o Valência a duas finais dos Campeões.
Em 2004, com Juan Soler a presidente, nova crise bruta, desta vez ligada ao desastre imobiliário que avassalou toda a Espanha. Com o preço baixo dos terrenos, estava excluída a venda do Mestalla e as dívidas voltaram a surgir como uma tempestade caribenha: 547 milhões de euros. O Governo Valenciano teve de intervir, os investimentos foram congelados.
17 de Maio de 2014. A Meriton Holding Ltd. avançava para a compra do clube por 94 milhões de euros. Peter Lim assumia o comando. O empresário e corretor de bolsa, filho de um peixeiro de Singapura (ele e mais seis), que recebeu a maior indemnização de sempre do país por difamação, depois de um processo contra o velho e inglês Raffles Town Club, apresentou-se com velhos vícios, os mesmos que demonstrara em Portugal. Lay Hoon Chan, também natural de Singapura, ocupou o lugar de presidente. Montra de jogadores que entravam e saíam aos molhos, treinadores despedidos em barda, classificações risíveis em La Liga, dívidas por pagar.

Um infinito pesadelo
As manifestações de adeptos contra a nova gerência tornou-se notícia quotidiana. Grupos numerosos exigem medidas extremas e sobretudo a saída do magnata: «Peter Lim go home!», dizem os cartazes. No princípio deste mês, frente ao Mestalla ainda em obras (a obra está calculada em 250 milhões de euros), a multidão concentrou-se e ficou por lá ao longo da noite. Os jogadores, por precaução, mantiveram-se dentro do estádio pela madrugada ouvindo os gritos de fúria. Folheando os jornais espanhóis da altura, podem ler-se frases soltas da populaça bradando para que se respeitem os 106 anos de história do Valência.
A derrota impossível deu-se no Estadi Olímpic, em Montjuic, no dia 27 de Janeiro: 1-7 frente ao Barcelona. Um enorme e infinito pesadelo. A Bankia, entidade bancária que estava encarregada de refinanciar o crédito viu com bons olhos a entrada do investimento inicial de Lim. Como é evidente. Mas breve foi a vida do milionário em Valência. Há quem afirme que há mais de cinco anos que não põe os pés no clube, deixando o (des)governo à consciência dos seus braços direitos. Não voltou a injetar dinheiros como prometera. E sem dinheiro, a equipa vive sem reforços e obrigada a jogar com muitos meninos da cantera. O futuro parece feio, mas o morcego não se cala.