Rafael Moreira. O renascentista que se perdeu na academia lusa

Rafael Moreira. O renascentista que se perdeu na academia lusa


1947-2025. Há um antes e um depois dele na história de arte em Portugal


Sabemos como este é um país de senhoritos sempre tão ciosos das suas coutadas, e como muitas vezes a música não pode soar sem antes pedir licença ao sangue, sendo ainda necessário ter os maiores cuidados se se for tomado pelo imprevisto anseio da dança para não pisar esses pés aferrados ao solo como raízes. Sabemos também como alguns pagam caro a ousadia, não lhes tendo sido reservados por qualquer foral os direitos de escavar o solo sagrado da nossa História, assim, por mais rigoroso e inspirador que se mostre um discurso, a alguns só a morte vem conferir o estatuto que lhes era devido, afastando as resistências, corroendo por fim as muralhas, uma vez que o perigo que significavam, já não será capaz de inesperadas sublevações. Rafael Moreira jamais teria hipótese de se afirmar entre horizontes tão curtos e vigiados, tendo ostentado desde cedo essa perversa insensatez de questionar as noções abalizadas no campo da história de arte em Portugal. Enquanto investigador, deixava-se assaltar pelas suas intuições, sendo o género de homem demasiado habitado por heranças outras, por um insaciável ânimo de descobridor, redigindo os seus textos com um fervor genuíno, mergulhando nos mistérios de forma delicadamente pedante, inegavelmente perspicaz.

Papel revolucionário na história de arte em Portugal

É curioso como o seu obituário no Público se lê todo ele como um ajuste de contas, como se só a morte tivesse permitido que, enfim, prestassem o seu testemunho aqueles que beneficiaram das suas lições, do convívio com ele, frequentando aquele espírito inquieto, indagador, que parecia estar sempre a ganhar balanço para provocar um estremeção nas bases da sua área de conhecimento. Vendo-se confrontados com a notícia da sua morte, que ocorreu na noite de 8 para 9 de fevereiro, depois de ter sido internado no Hospital Santa Maria dias antes, com um quadro infeccioso generalizado, antigos colegas e alunos, vinham fazer-lhe justiça, e reconhecer o seu papel “revolucionário” na disciplina de história de arte em Portugal, e frisando como a sua postura querelante e polemista no empenho em propor e debater as suas intuições, lhe valeram o ter sido rechaçado e prejudicado na sua carreira. Os historiadores de arte Miguel Soromenho e Nuno Senos, que foram seus alunos, recordaram como pôs fim ao seu vínculo com a academia na qualidade de professor associado na Nova, «depois de um júri o ter chumbado nas provas de agregação que lhe permitiriam aceder a um cargo de catedrático que deveria ser seu por direito, o que à data gerou indignação entre muitos dos colegas dentro e fora daquela universidade».

Reconhecimento internacional

Rafael Moreira tinha 77 anos, e vivia já num lar de terceira idade, tendo nos anos finais definhado em grande parte por efeito da desmoralização que sofreu, pois se o seu extraordinário faro o levava a fazer incursões temerárias e a valer-se de inúmeras fontes documentais, isso dava-lhe depois um arrojo que muitas vezes era tomado como um vício em romper com aquele estado tranquilo de autossatisfação que associamos aos especialistas. Em vez de uma espécie de aconchego intelectual, parecia mobilizado por uma intenção de abalar as convenções, e o facto é que, de acordo com o historiador de arte Ruy Ventura, se tornou «um dos nomes lusos mais citados em publicações internacionais da especialidade, ao ter ‘desencantado’ a nossa arte, retirando-a do cantinho bafiento onde por vezes andava metida». Não fosse o ato de reivindicação ou justiça, que tem um sabor quase de vingança, daqueles que vieram agora reconhecer os seus contributos decisivos para aquela disciplina, num trabalho assinado por Lucinda Canelas, teria prevalecido o descaso daqueles que quiseram vê-lo pelas costas, para que as suas teorias se decompusessem e mais tarde viessem à luz já reformuladas, com uma sobriedade tenteante menos ameaçadora.

Talvez o ponto crucial das suas investigações tenha sido a forma como desencarcerou a história de arte e da arquitetura como ramos autónomos, e procurou inseri-las numa perspetiva mais porosa e global, ampliando o contexto, estando recetivo a uma série de aberturas que foram inovadoras face à historiografia que se fazia nos anos 80 e mesmo 90, como assinalou Vítor Serrão. Tendo sido seu colega desde «a licenciatura (FLUL) ao Mestrado (FCSH), no magistério com os grandes Professores José-Augusto França e José Eduardo Horta Correia, nas discussões em torno dos conceitos de Renascimento e Maneirismo, nas exposições da Comissão dos Descobrimentos, e em diversas campanhas de investigação, debates, congressos, projetos e júris de doutoramento», Serrão tornou clara a importância de Rafael Moreira, vincando que há um antes e um depois da sua entrada em cena. «Antes do Rafael a história de arte em Portugal era uma disciplina de género, de estilos. Depois dele, passou a ter uma visão de conjunto e até uma ideologia própria». Tratou-se de ir mais longe, mais fundo, alargando a matéria para abranger a política, o mercado, as clientelas. «Com ele a história de arte encheu-se de ideias e passou a recusar as descrições minimamente quantitativas, passou a ser um corpo com alma», vinca o historiador de arte.

‘Um pioneiro’

Também Carlos Caetano, seu discípulo, enalteceu Rafael Moreira caracterizando-o como «um pioneiro, com vários contactos internacionais de referência, por exemplo John Bury, Fernando Marías ou André Chastel, entre outros». E além de uma biblioteca que partia e voltava de todas as direções, sem excluir a literatura, tinha algo de viajante à moda antiga, com a UNL a referir que «viajou extensamente pela Itália, sul da Europa e Brasil», tendo realizado quatro estágios trimestrais em Goa, Índia, e um, em Macau. Além de um bom garfo, apreciava as fontes vivas, devendo o seu sentido crítico tão apurado não apenas a um domínio da bibliografia europeia, mas à sua curiosidade e a essa disposição de manter o elo com o mundo e o tempo, em vez de sufocar sob o peso de uma  erudição livresca.

«A arte portuguesa isolada do resto do mundo acabou com o Rafael Moreira», disse Soromenho ao Público. E Senos acrescentou que «foi o primeiro a escrever de forma abrangente e sistemática sobre o Renascimento nacional, numa história com princípio, meio e fim». Tanto assim é que, como assinalou àquele diário, «Paulo Varela Gomes (1952-2016), historiador de arte com quem Rafael Moreira partilhava a paixão pela Índia, e por Goa em particular, costumava dizer, aliás, que tinha sido ele a ‘inventar’ o Renascimento português».

Teses, palestras e cursos

Nascido no Porto, Rafael de Faria Domingues Moreira estudou no Rio Janeiro, e depois de se licenciar em História na Faculdade de Letras de Lisboa em meados dos anos 70, fez o mestrado em 1982 e o doutoramento em 1991, já na Universidade Nova, onde foi professor e onde criou duas novas cadeiras: “Arte Colonial Portuguesa” (1992) e “Arquitetura Militar” (1998). Dirigiu mais de 40 teses, a maior parte publicadas com prefácio seu, deu palestras e cursos, entre outros, em Madrid, Escorial, Tenerife, em Espanha, na Universidade Paris-Sorbonne, e ainda em território francês, em Tours e La Réunion, também em Londres, Oxford e Leeds, no Reino Unido, Roma e Florença, Buenos Aires, Montevidéu e em todas as capitais brasileiras, assim como em países africanos, Marrocos e Etiópia, e nos EUA, onde foi “visiting professor” na Universidade de John Hopkins, (1999). Também foi professor convidado nas universidades de Innsbruck (2001), na Áustria, e na de Toulouse, em França.