Cherryvale, no Kansas,é uma terra tão boa como outra qualquer para se nascer. Situada nas Grandes Pradarias, local onde se instalaram, antes de serem empurrados para reservas onde definharam e se destruíram por conta do tédio, do álcool e das drogas, os índios Osage, em princípios de 1600 (Osage é um francesismo de Wazhazhe), que se declaravam a si próprios como Povo das Águas do Meio, tem horizonte tão longos como os pores do sol. Foi aí que surgiu no mundo Mary Louise Brooks, a precursora do corte de cabelo que entre nós ficou famoso por causa da Beatriz Costa, o bob cut, inventado por um cabeleireiro polaco chamado Antoni Cierplikowski, o Antoine de Paris, e inspirado no estilo arrapazado de Joana d’Arc, ícone da subcultura chamada flappers, que se distinguia pelo uso de saias curtas, e claro que saias curtas, antes da I Grande Guerra, eram aquelas que ficavam ligeiramente abaixo do joelho, que a pudicícia é muito bonita, sobretudo num país tão castigador de costumes como são os Estados Unidos da América, amarrados a um moralismo tão castrador como bacoco. Não por acaso, Louise diria mais tarde sobre os seus primeiros anos de vida que era proveniente de uma cidade onde as pessoas se benziam frente ao púlpito da igreja e cometiam incesto nos celeiros…
Filha de um advogado, Leonard Porter Brooks, que pouca atenção prestava à família, e de Myra Rude, que a deu à luz no dia 14 de Novembro de 1906, uma pianista talentosa que costumava tocar músicas de compositores como Debussy e Ravel para as filhas, envolvendo-as num ambiente de criatividade e romance que as influenciaria para o resto das suas vidas, Louise começou cedo a sua carreira de artista. Com apenas quinze anos já dançava em palco com um estilo sedutor e maroto que lhe granjeou simpatias. Em seguida foi cooptada pela Denishawn School of Dancing and Related Arts onde ganhou nome suficiente para viajar em espetáculos a Londres e a Paris. Não tinha um feitio fácil e já vamos desvendar porquê. Entrou em conflito com um dos fundadores da escola, Ruth St. Denis, que farto da sua pose de vedeta a pôs pura e simplesmente no olho da rua. Logo, logo, foi contratada pela Ziegfeld’s Follies, companhia de dança de um janota chamado Florenz Ziegfeld Jr., o homem que declarava querer glorificar a mulher americana nem que isso significasse ter de por as raparigas ao seu serviço a exibirem os maiores espaços de pele que pudessem. Eis então que miss Brooks, semi-nua, encantava os espectadores com as suas maminhas ao léu no Amsterdam Theater da 42nd Street de Nova Iorque. Entretanto, como era vulgar à época, começou a representar em filmes, naturalmente mudos. O primeiro foi da autoria do grande Howard Hawks, A Girl in Every Port (1928), encarnando a protagonista Mam’selle Godiva, que encantava Spike (Victor McLaglen), um marinheiro que andava no seu barco à vela pelos mares do mundo, e se perdia de amores por ela no porto de Marselha. Este McLaglen foi, na vida real, um bom tratante. De nome completo Victor Andrew de Bier Everleigh McLaglen, não se resumiu a ser ator como também foi boxeur e lutador de luta livre em Winnipeg, Manitoba, no Canadá, depois de ter sido guarda do Castelo de Windsor, função da qual foi expulso quando pediu para combater na II Guerra dos Boeres e descobriram que tinha apenas catorze anos. Ora, isso não o impediu de vir a ser sujeito estimado e vencedor de um Óscar para melhor actor em 1935, à conta de The Informer, de John Ford.
Não se pode dizer que Louise andasse em más companhias. O problema maior vinha de trás. Na tal cidade em que os primos e tios se embrulhavam com as primas e sobrinhas (e pior!) nos celeiros, a menina Brooks foi abusada sexualmente por um vizinho canalha, algo que a marcou traumaticamente para o resto da vida. Ferida a ferro quente pela violência a que foi sujeita, viria a revelar que nunca conseguiu ter relações consistentes e equilibradas com homens, e que necessitava de sentir da parte dos seus parceiros um toque de dominação, não se contentando com moços meigos que a enchiam de atenções.
A nudez tem custos
Apesar do drama que distorceu a sua visão da masculinidade, casou-se apenas duas vezes, o que era manifestamente escasso para os hábitos da Hollywood de antes e de hoje. Mas teve um caso muito badalado com Charlie Chaplin, que conheceu através de um dos seus benfeitores, o produtor Walter Wanger. Durou apenas dois meses e, quando a abandonou para casar com Lita Grey, Charlie resolveu enviar-lhe um cheque à laia de agradecimento. Louise driblou a ofensa com dignidade: devolveu-lhe o cheque junto com uma nota de agradecimento. Vai daí e casou-se com o ator e diretor inglês Albert Edward Sutherland, em 1926, do qual se fartou rapidamente, avançando para outro caso, desta vez mais escaldante com o magnata do futebol americano, George Preston Marshall, um dos fundadores da National Football League (NFL). Segundo ela própria: «Foi o mais fatal de todos os encontros da minha vida!». Talvez Marshall pudesse dizer a mesma coisa já que, apesar de a ter pedido em casamento várias vezes, acabou por desistir da empreitada por via de a saber carregada de amantes ocasionais, um deles com raízes arménias, John de Mirjian, fotógrafo do New York Times conhecido pelas suas imagens de atrizes famosas em poses bastante eróticas. Louise caiu na asneira de se deixar fotografar nua por ele e depois viu-se atrapalhada para o impedir de publicá-las, movendo-lhe um processo que, como não podia deixar de ser, veio a tornar-se um pasto para os jornalistas de escândalos.
Em 1933, divorciada que estava de Eddie, juntou os trapinhos em casório com o milionário William Deering Davis, desenhador de interiores e um dos primeiros aviadores americanos a ser enviado para a Itália durante a II Grande Guerra. William era um tipo charmoso e elegante, ou seja, a casta de indivíduos incapazes de serem brutos para as mulheres, algo que Louise não apreciava de sobremaneira, pelos vistos. Cinco meses depois da boda, saiu de casa sem dizer água vai, deixando um bilhetinho muito pouco educado na banca da cozinha. Mais eficazes foram as palavras que viria a deixar escarrapachadas numa longa entrevista: «As a matter of fact, I’ve never been in love. And if I had loved a man, could I have been faithful to him? Could he have trusted me beyond a closed door? I doubt it».
Na mesma entrevista falou sobre a sua dúbia sexualidade e sobre as relações que cultivava com duas colegas explicitamente bissexuais, Pepi Lederer e Peggy Fears, confessando que passara uma noite de libertinagem com Greta Garbo, descrevendo a sueca como uma amante masculina e terna, embora a segunda característica não fosse muito da sua preferência. Claro que isto a tornava interessante, no mínimo, ao olhar público. E ela não fugia às questões mais pertinentes, declarando que se não fossem as conveniências sociais todos seríamos assexuais. Desfeita pela artrite e por um enfisema pulmonar, morreria de ataque cardíaco no seu apartamento em Rochester a 8 de Agosto de 1985. Seis anos mais tarde, os Orchestral Manoeuvres in the Dark cantaram: «Born in Kansas on an ordinary plain/ Ran to New York but ran away from fame/ Only seventeen when all your dreams come true/ But all you wanted was someone to undress you/ And all the stars you kissed could never ease the pain…».