O Tatuador, de Junichiro Tanizaki, conta a história de Seikichi, um mestre tatuador que grava uma aranha colossal na pele de uma mulher de impressionante beleza. Este trabalho, que o artista vai executando numa mistura de inextricável desejo sensual e elementos de dor e submissão, tem como consequência uma obra de arte dotada de uma força negra e hipnótica que faz de Seikichi a sua primeira vítima.
Há uma força hipnótica nas esculturas de Marco Franco em Ângulo Vivo, uma “radiação”, como refere o belíssimo texto da folha de sala da exposição. Não é, talvez, a primeira sensação sugerida pela forma cuidada com que as esculturas são apresentadas na exposição. Mas quando se passa de uma visão panorâmica para um olhar demorado e detalhado sobre cada uma das peças, há uma pulsão quase visceral que se revela, uma ligação que transcende significativamente o seu aspeto visual e, até, a sua escala, insinuando uma narrativa silenciosa e potente, capaz de levar quem as observa para um território de sombras e forças inomináveis: “A vida mais viva que a nossa,/ Um repouso mais sólido que o da morte”, como num poema de Sylvia Plath.
Na forma como os ângulos destas esculturas são trabalhados pelo artista, tanto se pode encontrar uma exploração incisiva das consequências do ato de criação, como uma representação tangível da destruição deliberada, através dos movimentos que são impostos ao material, uma ambivalência que o conto de Tanizaki também explora.
A este propósito, aliás, importa destacar uma outra intertextualidade. O Tatuador de Tanizaki pode ser lido como uma variação de Frankenstein, de Mary Shelley, na forma como aborda o tema do confronto entre o criador e a sua criação, demonstrando a grande maleabilidade da estrutura narrativa criada por Shelley e todo o potencial do seu Monstro.
O Monstro, a criatura a que o consensus gentium convencionou chamar pelo nome do seu criador, Frankenstein, é um dos arquétipos mais revisitados e imitados da galeria de horror da literatura gótica. Curiosamente, um dos motivos que explica a influência desta obra é, exatamente, o quão invulgar parece quando arrumada na estante do gótico. É que Frankenstein é menos sobre o terror sobrenatural e mais sobre o terror da descoberta, nomeadamente através do progresso científico. Pode até dizer-se que inaugura uma tendência que entrará para o cânone da literatura de terror, em que, como resume Benjamín Labatut na Pedra da Loucura, “a verdade e a loucura podem ser sintomas da mesma doença e o preço a pagar pelo conhecimento é a perda da compreensão”.
Mas a obra de Mary Shelley tem, igualmente, um outro tema, bem mais antigo na literatura que o terror gótico – que O Tatuador de Tanizaki também explora – o do confronto e estranheza entre os criadores e as coisas criadas. Para convocar esta estranheza, a autora utiliza um recurso muito simples, mas eficaz: nunca é dado um nome ao monstro. O anonimato da criatura é, aliás, enfatizado pela autora na sua reação à receção da obra, desafiando “os críticos que, de forma tão limpa e precisa, encontraram nomes para descrever o horror central do romance”, como refere George E. Haggerty em Gothic Fiction/Gothic Form (1989).
Depois de assistir a uma das primeiras adaptações de Frankenstein para o teatro – Presumption; or, the Fate of Frankenstein, de Richard Brinsley Peake – Shelley escreve numa carta a Leigh Hunt que “este modo anónimo de nomear o inominável é bastante bom”. Mas o anonimato do monstro não é apenas um dispositivo, porque ele revela também a deceção do criador com a criatura, o asco pela condição incerta entre o artificial e o natural, entre a coisa e o humano. O anonimato expressa exatamente essa indefinição do monstro, que é ao mesmo tempo máquina e material biológico. No fundo, o criador não consegue, em definitivo, classificar a criatura e, por isso, ela fica sem nome.
Como se disse, o impacto das esculturas de Marco Franco é, também, capaz de sugerir a presença de algo inominável. Na sua total ausência de figuração, estas peças podem ser vistas como coisas criadas que provocam uma sensação de estranheza curiosamente assimilável ao que se descreveu, porque no seu origami metálico, no dinamismo e movimento que sugerem, tanto se sente uma antinaturalidade fria, como os gestos graciosos de um trabalho humano. Há nas peças de Ângulo Vivo uma qualidade de sombra, na qual se sente o peso e a respiração próprios de uma presença física, uma melancolia que se intui numa construção metálica fixa e muda, mas, paradoxalmente, consciente da impermanência das coisas humanas.
Esta é a segunda exposição individual de Marco Franco na galeria Bruno Múrias, depois de se ter estreado a solo com Obiustromos (2023). Duas exposições bastante diferentes, tanto nos materiais e nas cores utilizadas, como nos movimentos ensaiados, mas com uma certa continuidade, que é mais fácil de observar, por exemplo, ao comparar algumas das peças de parede de Obiustromos – a que o artista chamava “série: Windows” – com as “Inversões de giz” desta nova exposição. Ainda assim, mesmo nestas peças, o material segue agora rumos que sugerem uma fisicalidade mais deliberada.
Além da sua prática nas artes visuais, Marco Franco é conhecido pelo seu trabalho como compositor e intérprete em projetos como Montanhas Azuis, Mikado Lab ou Memória de Peixe, para além do seu trabalho a solo. Sendo irresistível estabelecer um paralelismo entre estas duas facetas do artista, algo que frequentemente é referido quando se fala do seu percurso nas artes visuais, em Ângulo Vivo esta referência não é injusta ou redutora da especificidade da sua obra plástica.
Apesar da sua presença material e estática, estas esculturas de Marco Franco desafiam a fixidez, como se o próprio movimento que sugerem estivesse a esculpir o espaço, criando formas imóveis, mas que parecem conter também uma promessa de transformação. E esta radiosa propensão para o movimento desafia não apenas a fixidez das peças, mas também o seu silêncio, como se a ocupação do espaço pelas esculturas fosse feita através de um gesto audível que rasga o ar. Creio, aliás, que ver esta exposição de Marco Franco convoca alguns dos seus trabalhos musicais, nomeadamente Arcos, álbum de 2021, o qual, que mais não seja, é um ótimo complemento sonoro para apreciar o seu trabalho como artista visual.
Ângulo Vivo apresenta dois núcleos de peças, um composto pelas já referidas “Inversões de giz”, colocadas na parede, e outro composto por nove peças, chamadas “Treamero”, que recordam origamis metálicos e ocupam a parte central da sala, por cima de dispositivos de exposição também desenhados pelo artista. A organização da sala é cuidada e pensada, potenciando ao detalhe a dinâmica própria de cada peça. Ao mesmo tempo, a disposição convida a que se interaja com as peças de diferentes perspetivas e proximidades, acrescentando-lhes novas impressões e leituras. Todos estes aspetos revelam um escultor cujas escolhas nunca são meramente funcionais, mas antes simbólicas, num trabalho que, na sua forma austera e abstrata, parece estar permanentemente consciente do impacto emocional das suas escolhas na experiência estética.