Segunda parte do artigo “A ESCOLA – PROBLEMA CENTRAL DA NAÇÃO”
A escola tem sido, em particular ao longo dos últimos cem anos, e de uma forma mais ou menos sistemática, um objeto de estudo onde se cruzam vários tipos de olhares e diferentes perspetivas de análise, que acabam por realçar uma realidade complexa e multifacetada. Por isso, quando se afirma que a escola é um problema central da nação, é importante termos presente que a resolução deste problema estrutural só será conseguida através de um conjunto de ações que incidam sobre as três dimensões educativas: uma dimensão macro – as políticas educativas nacionais, a estruturação, organização e administração do sistema educativo, a renovação da rede escolar e a avaliação externa das escolas; uma dimensão meso – a contratação dos profissionais da escola, as práticas de formação e avaliação profissional, a ligação (parcerias) da escola com a comunidade e as políticas e projetos autárquicos; e uma dimensão micro – os projetos educativos de escola (ou de agrupamento), a conceção e execução do currículo, as práticas pedagógicas e a consequente interação entre alunos e professores (perfis e relação entre aprendizagem e ensino), os processos de avaliação e classificação das aprendizagens e as relações da escola com os encarregados de educação e outros agentes educativos.
Sabendo-se que uma realidade de maior escala influencia positiva ou negativamente as de menor escala, do mesmo modo que uma de menor escala condiciona também as de maior escala, a resolução do problema que é a escola pública só pode ser conseguida através de um conjunto coerente de políticas que abranjam as três dimensões. No entanto, a génese de qualquer renovação terá de incidir, desde logo, na dimensão que está na base da realidade que se pretende melhorar. Por isso, este artigo incidirá, em especial, sobre a dimensão micro, não sem refletir, no entanto, sobre algumas ações que, consequentemente, deverão incidir sobre as outras duas.
Assim, a primeira reflexão a fazer é colocada pela pergunta: Por que motivo existem escolas? A resposta, aparentemente desnecessária, é simples (e fácil). As escolas existem porque há crianças e jovens que necessitam de ter acesso a uma educação de qualidade. Acolhê-los de forma organizada em torno de espaços físicos concebidos para o efeito é a maneira mais adequada de o conseguir.
E o que é uma educação de qualidade? – perguntar-se-á, de imediato. A resposta já não será tão simples e fácil, mas poderemos dizer (quase sem oposição) que é uma educação que proporciona a cada criança e jovem as competências necessárias para a sua formação integral e participação na sociedade, através de estratégias e práticas que, respeitando a especificidade de cada ser humano, dão a todos as mesmas oportunidades de sucesso. Dito de outro modo, é, segundo o objetivo 4 de desenvolvimento sustentável da ONU, uma “educação inclusiva e equitativa” que “promove oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. De facto, como refere o importante relatório “A Educação: um tesouro a descobrir” (1999), da Comissão Internacional da UNESCO sobre a educação para o século XXI, o tesouro a resgatar é “não deixar inexplorado nenhum dos talentos que estão, como tesouros, profundamente enterrados dentro de cada ser humano.”
Surge então uma terceira pergunta: Que competências promovem uma educação de qualidade? Sabendo-se que uma competência (skill, em inglês) é o resultado de um processo que interliga conhecimentos, capacidades e atitudes, podemos afirmar que uma competência é um saber estruturante que permite a cada criança e jovem construir um processo de integração na comunidade e na sociedade a que pertence. Segundo variadíssimos estudos, realizados por importantes organizações como a UNESCO, a OCDE, a Comissão Europeia, o Banco Mundial, o FMI, o Fórum Económico Mundial, um grande número de universidades (portuguesas, europeias e americanas) e, ainda, investigadores muito reconhecidos (como, por exemplo, Perrenoud e Morin), o desenvolvimento de competências é fundamental para o progresso e sucesso de cada ser humano. Na realidade, não descurando a importância da memorização (para a retenção de factos e procedimentos), são as competências que estão ligadas diretamente à retenção significativa da informação e à aprendizagem profunda, a partir da experiência pessoal, e remetem-nos para o chamado conhecimento tácito, considerado, cada vez mais, como o fator crítico da competitividade económica das organizações e dos países.
Segundo praticamente todos esses estudos (mas rejeitando uma divisão artificial – de tipo teórico – que pretende diferenciar – milimetricamente – competências e skills), as competências são organizadas em dois tipos: hard skills e soft skills. Os primeiros são saberes estruturantes facilmente ensináveis e quantificáveis, estando diretamente ligados a conhecimentos disciplinares ou de trabalho. Os segundos são menos tangíveis e mais difíceis de quantificar, resultando mais da experiência e de fatores emocionais, podendo mesmo ser inatos, sendo vistos como competências de alto nível, determinantes para o sucesso pessoal e profissional.
COMPETÊNCIAS A TRABALHAR NAS ESCOLAS | |
HARD SKILLS | SOFT SKILLS |
Escrita estruturada; leitura compreensiva; domínio de línguas estrangeiras; capacidade de usar os números, de operar e de usar as noções de tempo, espaço e posição; explicitação do raciocínio (fundamentação); uso de ferramentas digitais e pensamento computacional. | Gestão da informação, transdisciplinaridade, comunicação interpessoal e empatia; criatividade e inovação; resolução de problemas e de conflitos; trabalho em equipa; proatividade e resiliência; autorregulação (direção, reflexão e avaliação); empreendedorismo e gestão de projetos; pensamento crítico e estratégico; adaptabilidade, flexibilidade e gestão do risco; gestão do tempo; ética. |
Coloca-se, finalmente, a última pergunta: Como desenvolver estas competências na escola? Entramos agora no modo como as escolas deverão ser organizadas para que cada criança e jovem tenha acesso a uma verdadeira educação de qualidade, de alta qualidade. Ao colocar-se a tónica no desenvolvimento de cada ser humano, respeitando as suas especificidades, a educação do futuro rejeita, desde logo, o paradigma da instrução, presente na escola do ensino (heterónomo), da transmissão (unidirecional) e do conteúdo (prescritivo), que tem na aula coletiva e na lição (ensinar a todos como se fossem um só) as suas imagens de marca. Porque cada ser humano deve ser entendido e respeitado na sua individualidade (o princípio da diferenciação pedagógica), a escola pública tem de construir um novo paradigma de ação educativa: o da aprendizagem (profunda), da comunicação (em inter-relação) e das competências (para a vida). Por isso, tem de mudar bastante, construindo-se uma nova cultura de ser, estar e agir.
Para que a mudança seja real, o Estado tem de ter uma atitude muito diferente em relação às escolas públicas e à educação, assumindo, na prática e não em discursos inconsequentes, que a renovação da educação é a maior prioridade para a modernização da sociedade portuguesa, em vez de a relegar, na prática e por razões económicas e financeiras, por medo do confronto com poderes estabelecidos ou ignorância e incapacidade, para a última das prioridades.
É óbvio que: (i) essa mudança não ocorrerá de um ano para o outro; (ii) nada se altera unicamente com produção legislativa, a qual, por mais adequada, esbarra sempre na entropia das zonas de conforto da autossuficiência docente e na mediocridade gestionária de muitas escolas; (iii) nada se transforma com os atuais processos de formação contínua de professores, que só funcionam para os créditos (progressão “automática” na carreira), nunca contribuindo para a evolução da escola pública.
No entanto, uma alteração estrutural, profunda e sistémica da escola pública, tem de iniciar-se com a maior brevidade, com conhecimento, inteligência e determinação, expressando-se de uma forma alargada (abrangendo os vários ciclos da educação básica) e com escala nacional, através da criação de um verdadeiro Projeto-Piloto que funcionará durante 12 anos e que, numa primeira fase, criará uma rede com um mínimo de 22 escolas (toda a escola e não “turmas-piloto”), com presença em todos os distritos do país e unidas pelas seguintes caraterísticas:
- Verdadeira autonomia: curricular, pedagógica, administrativa e financeira para desenvolver a sua ação educativa, numa perspetiva humanista, personalista e integral.
- Nomeação dos diretores por parte do Ministério da Educação: o diretor de uma escola tem de ser um verdadeiro líder educativo e pedagógico, motivando e envolvendo toda a escola e a comunidade para o cumprimento da sua missão renovadora, agindo diretamente nesse processo. Para isso, as escolas têm de ter os melhores gestores à sua frente, com conhecimento do terreno e prática de inovação consolidada, em vez de continuarem reféns de uma gestão burocrática e imobilista.
- Criação coletiva (e monitorização) do Projeto Educativo de Escola, o qual“consagra a orientação educativa da escola (…) no quadro da sua autonomia pedagógica, curricular, cultural, administrativa e patrimonial” (decreto-lei n.º 137/2012), funcionando como um verdadeiro plano de inovação curricular, pedagógica e organizativa, assumido por toda a escola e comunidade e acompanhado da necessária operacionalização, acompanhamento e monitorização.
- Recriação dos espaços escolares: flexibilização dos espaços internos, substituindo as salas de aula por áreas abertas de aprendizagem, com mobiliário flexível e criativo, bem como humanização e naturalização dos espaços exteriores da escola, promovendo o brincar, o convívio e o trabalho no exterior.
- Conceção e gestão do currículo: assumir que os documentos “Metas de Aprendizagem” e “Aprendizagens Essenciais” não são o programa “a dar”, mas sim instrumentos de apoio analisados criticamente para a necessária apropriação curricular (com a participação ativa dos alunos) e consequente criação do Projeto Curricular de Escola, construído a partir das competências e incluindo objetivos de aprendizagem disciplinares e transversais a serem atingidos no final de cada ciclo educativo e não por anos de escolaridade. Redefinir a organização dos ciclos do sistema educativo integrando, desde logo, o 1.º e 2.º ciclos num ciclo comum (composto por 3 fases de 2 anos cada).
- Organização e gestão do trabalho pedagógico: substituir a organização por turmas e anos de escolaridade por agrupamentos flexíveis de alunos, constituídos de acordo com a sua autonomia, pré-requisitos já adquiridos e interesses pessoais. Fomentar o princípio da aprendizagem baseada em projetos (a partir dos centros de interesse das crianças e jovens), com integração inter e transdisciplinar. Constituir, em todos os ciclos, equipas educativas (com o mínimo de três professores) trabalhando no mesmo espaço, em que cada docente assume a tutoria de 15 a 18 alunos, rejeitando a ideia de “professores titulares de turma” e de “professores por disciplinas” que só promove a realidade do professor solitário e individualista.
- Avaliação formativa e formadora das aprendizagens: também denominada de “avaliação para as aprendizagens”, é entendida como um processo de recolha, reflexão e transmissão de informações qualitativas (feedback de qualidade), com o objetivo de identificar, com os alunos, o ponto da situação de cada um no processo de aprendizagem, com vista à sua melhoria e evolução. Assim, promove-se a interação produtiva entre professores e alunos, destes entre si e a sua capacidade de reflexão, aumentando-se a motivação para a progressão na aprendizagem.
- Formação contínua dos professores em contexto de escola: um processo de renovação com esta profundidade e abrangência implica um esforço grande de formação de professores, no contexto da escola e em imersão reflexiva, aproveitando-se a verdadeira capacidade existente no corpo docente, libertando-o das amarras tradicionalistas de planificações heterónomas, da aula expositiva e da avaliação para a nota (testes e classificações percentuais), preparando-o para metodologias ativas de aprendizagem e ensino, construtoras de aprendizagens significativas e profundas, em que os alunos assumem uma atitude de autorregulação em torno de comunidades solidárias de aprendizagem, formadas por alunos, professores e membros da comunidade. Desta forma, promove-se a…
- Construção de um novo perfil do professor, especialista no desenvolvimento de práticas de apropriação e desenvolvimento curricular, na metodologia de projeto, no envolvimento ativo dos alunos na sua própria aprendizagem e nos princípios de uma avaliação formativa e formadora (feedback de qualidade). Por isso, os professores do Projeto-Piloto deverão ser selecionados a partir de um perfil-base e através de concurso público, especialmente aberto para o efeito e seguido de entrevistas, garantindo-se assim as condições necessárias para o arranque do Projeto-Piloto. A construção deste novo perfil do professor contribuirá, ao mesmo tempo, para redignificar a profissão docente e dar-lhe o prestígio social que merece.
- Regulação externa das escolas por parte do Ministério da Educação: reativar o Instituto de Inovação Educacional(encerrado em 2002, sem qualquer auditoria à sua ação), o qual terá a responsabilidade do acompanhamento nacional do Projeto-Piloto e integrará equipas regionais de formação e apoio às escolas selecionadas. Essas equipas deverão ser constituídas por formadores com uma práxis (prática escolar e sólida fundamentação teórica) inovadora e continuada em projetos de inovação já realizados anteriormente pelo Ministério da Educação. O Instituto de Avaliação Educacional coordenará a avaliação externa (trienal) das escolas envolvidas, realizada por equipas formadas por elementos (nacionais e estrangeiros) com prática na avaliação de sistemas escolares inovadores, e decidirá do alargamento a novas escolas, após o primeiro triénio do Projeto-Piloto.
- Evolução do conceito de escola pública, por oposição à conceção de escola pública como “a escola do Estado”: ao longo do desenvolvimento do Projeto-Piloto, permitir a criação de escolas públicas de iniciativa privada, à semelhança do modelo das Charter Schools nos Estados Unidos da América e das Escolas Livres na Suécia, as quais passarão a integrar o Projeto-Piloto. De facto, uma escola pública não tem de ser, exclusivamente, uma escola de iniciativa do Estado central, devendo este apoiar financeiramente iniciativas locais de grupos de professores, encarregados de educação e elementos da sociedade civil que, respeitando o princípio de que uma escola pública não tem fins lucrativos, pretendem desenvolver uma educação inovadora e de alta qualidade, gratuita e aberta a todos, em particular aos mais desfavorecidos.
Porque “a Escola nos educa ainda hoje como se cada qual tivesse de ir viver para o seu castelo roqueiro, e como se os «outros» fossem paisagem que desfrutássemos tranquilamente das ameias do referido castelo; ou como se a Providência velasse discretamente pelo nosso sono, tirando-nos de cima dos ombros os cuidados da coisa pública”, recriar a escola pública permitirá “à juventude (…) transmitir a toda a nação um sangue novo e rico que amanhã a perpetuará, renovando-a.” [1]
[1]“SARAIVA, António José (1947). A ESCOLA – Problema central da Nação. Lisboa: Edição do autor, (pp. 34 e 44)