Marianne Faithfull. A mulher que foi Eurídice e Orfeu

Marianne Faithfull. A mulher que foi Eurídice e Orfeu


1946-2025. Ícone da Swinging London, morreu a musa de si mesma.


Já se sabe que uma vida não é uma biografia, e um obituário, por mais extenso que seja, muitas vezes nem o fulgor de um respiro capta, de um olhar penetrante, às vezes desafiador outras apenas doce como o dela.

Marianne Faithfull foi muitíssimas coisas, de tal modo que era possível esgotar os carateres desta breve nota só enunciando da forma mais telegráfica tudo o que ela foi e representou enquanto ícone de uma exuberante vanguarda que soube revirar inteiramente as expectativas, nos anos em que Londres era o epicentro de um tremor de terra magnífico. Ali se confrontavam as tendências mais conservadoras e repressivas com a arte feita carne daqueles que estavam apostados em expor a podridão que sempre se esconde por trás das boas tradições e valores.

Ela foi Eurídice e Orfeu, conheceu os picos e os abismos, tratava por tu e amantizou-se com esses híbridos de anjos e demónios, foi cantora e atriz, uma das protagonistas da Swinging London, teve um namoro com Mick Jagger cujas cicatrizes nunca cessaram de florescer, inspirou malhas dos Rolling Stones como ‘Wild horses’ e ‘You can’t always get what you want’, foi toxicodependente, viveu nas ruas, teve com a morte uma relação absurdamente incestuosa, o que lhe deu margem para renascer as vezes todas que quis.

Assim, a sua morte definitiva, aos 78 anos, no passado dia 30, não foi a maior surpresa, mas a constatação, como ela própria reconhecera, de que acabou por ter uma carreira de mais de cinco décadas, deixando 21 álbuns em nome próprio, tendo colaborações não só com os Stones, mas ainda com Nick Cave, Damon Albarn, Beck ou Metallica. Muito nova pisou os palcos, representou Tchekhov e Shakespeare, depois chegou ao grande ecrã com Orson Welles, Alain Delon e Jean-Luc Godard…

Para lhe fazer justiça, o obituário dela seria também metade flor metade cinza: uma tão delirante e enérgica ode, seguida de uma elegia dolorosa ao ponto de gerar pavor, e acabaria por ser menos uma biografia do que o retrato de uma época, sendo difícil imaginar que muitas fossem capazes de nos oferecer uma figura que experimentou tantos altos e baixos, não só a dependência da heroína, como o cardápio das doenças todas, da anorexia ao cancro da mama, da hepatite C ao enfisema pulmonar em resultado das décadas como fumadora. Sobreviveu a uma paragem cardíaca, dois comas.

Em 2020, quase soçobrou à covid-19, mas no ano seguinte ainda gravou o seu canto de cisne, o álbum She Walks in Beauty. E talvez fosse essa a receita: aguentou o inferno e (talvez ainda mais difícil) o paraíso, aguentou tudo, porque caminhava pelo lado da beleza.