O festival literário de Penacova e o despotismo dos autores

O festival literário de Penacova e o despotismo dos autores


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A promoção de um festival literário organizado pela autarquia de Penacova conseguiu gerar algum bulício nas redes sociais, mas não pelas razões pretendidas. Enquanto uns se indignavam com um cartaz onde só havia homens, outros pareciam reconhecer que os tais “autores” não passavam de manequins da montra mediática. Depois, surgiu uma leitura crítica da estupidez que se esgrimia ali de parte a parte.

Nos nossos dias, os exercícios de crítica ou interpretação tendem a ter uma vida limitada, ficando confinados à academia, e sendo, fora dela, desencorajados. Não só os livros que se dedicam à leitura e análise de obras escritas por outros são designados geralmente como “bibliografia passiva”, recaindo na esfera dos autores estudados, mas toda essa poética que passa por desafiar os modos de acomodação dos textos, de interrogá-los, de profanar os clássicos, desenterrar os mortos, retomar-lhes o fôlego, roubar-lhes órgãos e respirar neles um outro tumulto, ferver-lhes os ossos para criar um caldo e temperar os alimentos a ingerir, todas as práticas canibais geram um certo desconforto. É suposto honrar os antigos, transmitir a sua memória, mas sem questionar a tramitação temporal, sem instaurar uma nova qualidade do tempo.

Como assinala o dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller, o desafio que se nos coloca hoje é o de separar a literatura das bibliotecas, as obras de arte dos museus, a leitura da escrita. Em seu entender, “a tendência para a musealização da arte decorre do facto de que todos vivemos em museus”, e que esta experiência humana mais básica serve como padrão para a nossa concepção da realidade. “Quando somos crianças brincamos com objectos, peças de mobiliário, por exemplo, que são mais velhos do que nós. Aquilo de que vivemos, onde vivemos, tudo é mais velho do que nós. A moda não toca senão a superfície, nunca afecta nada de fulcral la onde o efeito gravitacional do velho prevalece. Temos de ter bem clara na nossa cabeça esta experiência humana mais básica de modo a mexermos com ela. Também a história, ou pelo menos a nossa concepção de história, é algo de incompleto e que tem de ser mantido em movimento.”

Nos últimos dias, ganhou propulsão nas redes sociais por via dos seus mecanismos publicitários a primeira edição de um festival literário em Penacova, que decorrerá entre os dias 17 a 22 deste mês, e que pouco depois de começar a fazer as rondas, tentando atrair visitantes, ganhava cada vez maior expressão por um efeito de clamor e indignação, não por aquelas figuras que apareciam como cabeças de cartaz serem todos homens, mas também por formarem um elenco bastante medíocre, não se tratando de autores consolidados pela crítica, mas sobretudo como figuras da mediocracia, que procuram atrair um público que se limita a aderir àquelas propostas que lhe reservam uma condição passiva, estando ali para celebrar os efeitos cénicos de um regime alargado da exposição mediática. A mais consequente das críticas formuladas a este festival, não se detinha, contudo, nas debilidades da representação, em termos de amostra, do tal clero mediocrata, mas assinalava algo mais pernicioso e que raramente tem motivado uma análise crítica. Fernando Ramalho, ensaísta e livreiro, chamou a atenção para “a quase total colonização do debate literário pela figura do autor”. “Por via da sua condição de proprietário intelectual, do autor espera-se que, em vez do texto, seja ele próprio, a sua presença, a sua redução a uma imagem, o elemento de ligação ‘autêntica’ com os leitores, desse modo tornados público, ou seja, mercado”, adiantava Ramalho. “E a racionalidade da presença do proprietário no mercado é, precisamente, consolidar-se enquanto marca e maximizar o retorno da circulação da sua mercadoria. Estilizado como mercadoria, o artefacto literário perde a possibilidade de, como sugeria Carlos de Oliveira, em 1971, no Aprendiz de Feiticeiro, ‘ir colhendo aqui e ali um amor frustrado, uma ideia indecisa, uma simpatia política; ou a presença da morte, o ódio à espera de um abcesso de fixação, qualquer movimento ainda inerte aguardando o sinal combinado para começar’. Em vez de ser ‘esse animal faminto’ que devora tanto quem escreve como quem lê, o texto, embrulhado pelo livro, é uma espécie de gatinho fofinho que anima a imagem que intercepta o autor e o seu público. Parece ser essa a lógica dos festivais literários, mas também dos muitos espaços de encontro em torno da literatura que, crescentemente, replicam o seu modelo”, concluía o ensaísta.

Ortega y Gasset gostava de lembrar que a palavra “autor” vem do latim “auctor”, título que os romanos davam aos seus generais que acrescentavam o império, por conquista de novos territórios. No sentido que hoje lhe damos, habitualmente pretende-se enaltecer estas figuras como sendo aqueles que acrescentam o nosso património, não por conquistas materiais, mas sim por conquista de novos territórios espirituais. Tem-se persistido num equívoco em que, ao mesmo tempo que há um discurso de promoção dos livros, da leitura, da língua, da cultura, por outro lado todas as manifestações que se concatenam para esses bondosos fins, em vez de criar margem para que os textos e as obras venham instigar a nossa disponibilidade de movimentos, construindo uma zona de liberdade e recriação dos espíritos, continua a promover-se um modelo em que as obras servem apenas para afirmar uma condição de privilégio ou distinção, transformando-as em monumentos de uma memória incontestável, e que o leitor deve contemplar e respeitar enquanto tal, como um visitante de museu, estando-lhe vedado qualquer tipo de apropriação ou de uso para os seus fins. Fica, assim, excluída deste processo esse ânimo dos leitores que constroem o seu percurso nas bibliotecas como se as incendiassem, aqueles que possuem uma memória colossal, e que, de caminho, devastam as tão persistentes quanto ingénuas pretensões de originalidade, a ideia de uma literatura preservada por conservadores, enquanto um património que assume um papel de identificação de “um povo”, uma cultura, e serve os desígnios de afirmação de um poder. Pelo contrário, a literatura enquanto um campo sujeito aos maiores abalos, a uma estupenda intranquilidade, deve o seu fulgor e dinamismo àqueles que se movem nela com a compreensãode que, do lado da escrita como da leitura, o que importa é fazer dela um campo de combinações, cuja potência vem da possibilidade de tresvariar, produzir novas, infinitas conjecturas, abalando a realidade. Como nos diz Heiner Müller, “os artistas operam com os elementos estruturais, reconfigurando as partículas da realidade, e, em parte, anulam a realidade. Cada vez menos este processo pode ser controlado pela sociedade, e é isso que explica porque é que a civilização se vai tornando cada vez mais hostil à arte. A arte é uma ameaça a qualquer ordem existente.”

Um verdadeiro festival literário seria aquele que, em vez de reforçar esse princípio da propriedade dos autores sobre as suas obras ou textos, procurasse antes fazer a literatura sair desse efeito de publicidade de si mesma, desse regime das figuras que se representam a si mesmas, numa performance redundante, encerrando-se no museu. “Expulsar a arte e a história do museu significa resgatá-las da morte e estabelecer um discurso com a vida”, refere Müller, acrescentando que só a produção de novas perspectivas torna possível viver. “Tudo o resto nos torna zombies.”

Acompanhando esta noção, Fernando Ramalho não se limita a assinalar a impostura do formato dos festivais literários, nem se deixa enredar na obtusa indignação que não consegue formular nada mais do que uma exigência de “uma maior pluralidade de género ou um aumento do pedigree dos participantes”, mas procura desarmar este espartilho, em vez de lhe dar mais força ao limitar-se a propor uma amostra mais abrangente. Assim, e ainda seguindo Carlos de Oliveira, Ramalho sugere que as iniciativas que procuram defender o espaço literário criassem as condições para “sondar o destino do romance ou do poema, auscultar a tarefa anónima que os modela continuamente e lhes dá vida”. “Por exemplo, continua Ramalho, “organizar um festival literário onde não houvesse autores nem painéis nem plateias nem cadernetas de cromos; só leitoras e leitores devoradas por animais famintos.”

É evidente que estas noções em si mesmas tendem a passar inteiramente ao lado dos programas que pensam a cultura como um efeito de promoção das regiões, e em que as verbas são aplicadas de forma a refortalecer os índices a nível dos motivos de atracção turística, pensando-se, hoje, as localidades como feiras que disputam entre si esses fluxos que se deslocam em grande número em busca de “experiências”. Reduzindo a cultura aos elementos pitorescos que permitem a uma dada província fornecer de si mesma uma visão caricatural, transformando-se num cenário que mereça assim ser capturado e imediatamente identificado num postal, esse é toda a dignidade que se autorizam os gestores de cadernetas e portefólios, pensando sempre na valorização dos seus activos. Não interessa, por isso, desmontar essas representações ou mitos, mas reforçá-los. Naturalmente, a ideia de decompor essas categorias ou noções estáticas significa pôr em causa os atractivos “próprios” de uma localidade ou região. Como nos diz Muller, “brincar com a realidade é subversivo, porque mina a realidade”. E o mercado intervém precisamente para impor categorias estáticas, um regime de previsibilidade e estabilidade, de forma a vender “experiências”, a não defraudar a expectativa que promovem os prospectos turísticos. Do mesmo modo, o mercado da arte combate aquele efeito de subversão transformando as obras de arte em mercadorias culturais. “Tenta esterilizá-las e torná-las seguras, integrando-as na circulação do mercado”, adianta o escritor alemão. Por essa razão, este dendê que as obras de arte devem ser abandonadas se a sua força destrutiva puder ser explorada. “A mesma coisa acontece com o teatro e com o circuito dos festivais. A função do festival é despojar uma produção daquilo a que poderíamos chamar a sua aura, o seu efeito. Quando uma obra de arte – seja uma peça, um quadro, um livro – está

em circulação, deixa de ser capaz de adentrar a realidade, ou a nossa concepção da realidade. Os executantes sabem secretamente que a realidade é apenas uma ficção, e morrem de medo de que as concepções ilusórias da realidade ganhem espaço. Lançam mão de todos os meios para defender o terreno dos factos em que temos de viver, ou em que acreditamos ter de viver. As obras de arte não têm uma função, têm um efeito, na medida em que cancelam o

efeito gravitacional do velho. O que experienciamos como realidade é sempre o produto da tradição. A arte, ao invés, existe basicamente na esfera do não-tradicional.”

A dificuldade de tornar claro este exame crítico passa pelo facto de, entre aquilo que hoje consegue promover-se através deste circuito dos festivais e dos canais de exposição mediática, só ganham protagonismo aquelas obras e textos que excluem o papel dos leitores, que procuram por todos os meios degradar as possibilidades da sua decomposição e utilização para os fins mais diversos. Da mesma forma que poucos se dão conta do processo de erosão deste ímpeto recriador, o qual decorre da funcionalização do sujeito através da tecnologia, que cada vez mais passou a definir as experiências de interacção entre as obras ou os autores e o público. De algum modo, somos expulsos da nossa memória, uma vez que a tecnologia, como aponta Müller, é concebida para a extinção da memória. Todas essas próteses que supostamente reforçam as possibilidades cognitivas, na verdade, acabam por tornar-nos dependentes, viciados, levando a mente ao desamparo assim que estas lhe faltam. É como se nos faltasse o chão. Jean Paul afirmou que a memória é o único paraíso do qual ninguém pode ser expulso. E isto significa que depois de adquirida uma verdadeira experiência esta é tudo menos estática, sendo o espírito capaz de um transporte e expansão desta, tornando-a actuante. Por outro lado, se encararmos meramente as obras de arte enquanto títulos, formas de um autor se evidenciar e exercer sobre elas uma forma qualquer de imposição, enquanto seu proprietário, estas tornam-se instrumentos de exclusão, formas de exercer o privilégio. Tornam-se cúmplices do poder. Esta tendência nas últimas décadas tem sido tão forte que, segundo aquele dramaturgo e poeta alemão, “as pessoas já nem conversam com as suas estantes de livros, ou seja, com velhos pedaços de memória, como fazia Giev em O Cerejal, de Tchékhov, mas ficam em frente aos ecrãs, que têm resposta para tudo”. Müller insiste que os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”.

Assim, é evidente que se queremos libertar a literatura desta pulsão expansionista do mercado, temos de dar cabo desses generais que ocupam, hoje, todas as manifestações feitas em nome da cultura e da arte, mas que apenas consolidam esta formas que esvaziam lentamente o sujeito para o engolir depois. O público construído por estes festivais, na verdade, expulsa do seu seio os leitores, aderindo aos efeitos de encadeamento mediático, transformando-se num espectador, ou seja, aquele que deixa de ser capaz de se auscultar a si mesmo, servir-se das obras e dos textos para conversar consigo próprio, segurar o seu lado, a sua autonomia, interromper o solilóquio, e forçar o diálogo.