- Os cidadãos e, em especial, os juristas constatam que é cada vez mais difícil impor a força do Direito, face à evidência da resistência reiterada e desreguladora dos mercados.
No campo do Direito do Trabalho e dos direitos sociais que dele dependem, tal evidência é, ainda, maior.
Quando não são pura e simplesmente erradicados, a doutrina neoliberal prevalecente e alguma jurisprudência seguidista, encarregam-se de erodir tais direitos até à sua quase insignificância.
As leis do trabalho e todas as outras leis que, em necessária articulação com elas, regulam a segurança social, as pensões e, em parte, a saúde pública, estão, hoje, sob fogo cerrado.
Com o seu definhamento, é, porém, a própria ideia de Democracia que a nossa Constituição assume, que morre um pouco mais todos os dias.
- Há pouco mais de meio século, depois da II Grande Guerra, os Estados e as instâncias europeias ensaiaram e, de algum modo lograram, criar uma Democracia social baseada em direitos diretamente vertidos nas constituições nacionais e em tratados supranacionais.
Embora os objetivos e instrumentos que presidiram à reconstrução da Europa fossem, sobretudo, económicos, a sombra do mal e a memória ainda muito presente da destruição e da morte impuseram algum sentido humanista a muitas leis então surgidas: com tais leis vivemos na Europa, em paz, durante mais de meio século.
Hoje, contudo, a ideia hobbesiana de “todos contra todos” parece ter sido restaurada.
O discurso que os órgãos de comunicação de massas constantemente produzem conseguiu, na verdade, gerar e impor uma hegemonia cultural em favor dos que defendem os valores do individualismo e em detrimento dos que sustentam a solidariedade e os direitos sociais.
A Democracia nascida no pós-guerra foi, assim, politicamente reorientada nos seus valores e objetivos.
A noção de ineficácia, obsolescência, e mesmo da falência do Estado e das instituições criadas no final da II Grande Guerra, para, precisamente, apoiarem o bem comum e salvaguardarem a dignidade da vida dos homens e mulheres, é, regularmente, difundida, todos os dias, e a todas as horas, sem que um verdadeiro contraditório seja possível.
- Erguem-se e repetem-se, agora, em contrapartida, encantatórios hinos em louvor da excelência da iniciativa privada e da sua exclusiva capacidade para, miraculosamente, supõe-se, criar riqueza.
Do apoio financeiro que o Estado, regularmente, lhe dá, pouco se fala, contudo.
Pouco se fala, também, da necessidade de distribuir tal riqueza com justiça.
Quando, episodicamente, o assunto é aflorado, logo se diz que é, ainda, indispensável aumentar mais a produtividade, para, depois, sim, redistribuir a riqueza gerada.
Não se refere, porém, que, com ou sem aumento da produtividade, os donos dos motores de produzir fortunas enriquecem, já hoje, desmesuradamente, e a um ritmo nunca antes alcançado, como comprovam todas as estatísticas.
É exclusivamente nesta miraculosa iniciativa privada – que tem como objetivo primordial óbvio a realização do lucro -, que muitos querem convencer-nos que assentará, doravante, a função corretiva e pacificadora da sociedade.
- Longe vão, pois, os tempos em que a social-democracia e a democracia cristã europeias desenhavam e impunham limites aos proveitos exorbitantes alcançados pela iniciativa privada.
Justificavam-se no que diziam ser a função social da propriedade, ideia que repescaram, melhor ou pior, na doutrina social da Igreja Católica.
Acresce que, hoje, para legitimar e concretizar a mudança de paradigma no desenho do modelo democrático – por isso, se fala tanto na necessidade da reforma do Estado – começamos a deparar com o aparecimento de um “direito” novo, informal, moralmente neutro e puramente pragmático.
O objetivo deste novo “direito” não é já o de apoiar a superação das dificuldades que afetam os setores mais débeis da sociedade, mas, declaradamente, tem o seu foco na realização dos interesses imediatos e egoístas dos detentores do capital.
Tal “direito”, em minúsculas, já não se revê em preocupações de ordem humanitária nem nas necessidades dos diferentes povos: é um direito aparentemente técnico e com vocação puramente regulamentar.
Ele justifica-se, sobretudo, num referencial meramente económico: interesses económicos que, por sua vez, e como têm referido os dois últimos papas, se autonomizaram da vida real, desvinculando-se das mais evidentes carências dos homens.
Trata-se, pois, de um direito que, tudo o confirma, se desumanizou.
- Pelas resistências sociais que provoca, este ataque e desmantelamento do Estado Social e do Direito constitucional que o consagrou, conduz, inevitavelmente, os seus promotores à necessidade de encontrar ou inventar bodes expiatórios capazes de iludirem as suas consequências mais funestas.
Tal processo de justificação do retrocesso civilizacional em curso recorre, por isso, a discursos já antes experimentados: ao desenvolvimento dos preconceitos relacionados com o chauvinismo, o racismo, o nacionalismo radical e, mesmo, ao alindamento de um rejuvenescido belicismo.
E, quem fala de guerra, fala, enfim, da necessidade de produzir e adquirir mais e mais armas, para a fazer.
Apoiados neste discurso bélico, alguns caixeiros viajantes das empresas da morte – trajados a preceito e de fato escuro, como convém – percorrem, atualmente, a Europa, tentando que os Estados incrementem gastos com a guerra e impondo quotas mínimas nos orçamentos dedicados à compra das armas que os seus patrões produzem.
Sem disfarces já, a sua pretensão é a de que se troquem as despesas que os Estados fazem com os direitos e obrigações sociais, por gastos em armamento e investimentos na guerra: leia-se, o fim do Estado Social europeu.
Guerra que concluem – não se cansam de profetizar – irá alastrar, em breve, a todo o continente europeu.
E fazem-no, mesmo sabendo que, se tudo descambar num conflito à escala continental ou mundial, tais armas de pouco ou nada valerão face à possibilidade do uso do terror nuclear por parte das grandes potências: nenhuma delas admitirá a derrota antes de as usar.
As armas que nos querem obrigar a comprar são, assim, obviamente inúteis, mesmo como instrumento de dissuasão.
Além de que nem sequer são, ou serão, produzidas na Europa.
Terão de ser adquiridas fora, contribuindo, assim, apenas, para tornar certos aliados – os que as produzem – grandes de novo.
- Face a esta política insana, só a aliança entre todas as forças de inspiração humanista, e os movimentos sociais por elas gerados, poderão desviar-nos a todos da catástrofe para onde, de olhos fechados, nos querem empurrar: a guerra.
Não, não e não: não vamos, como afirmam, precisar de começar a aprender russo ou chinês.
Os que negoceiam em armas, sejam eles de onde forem, estejam eles onde estiverem, falam, fluentemente, a língua dos negócios: o inglês.
Não, não e não: a guerra não é uma fatalidade.
Não, não e não: não é urgente priorizar a compra canhões em vez de solidificar o Estado Social.
Só, precisamente, o reforço e aperfeiçoamento deste – todos sabemos-assegura paz interna e externamente.
Nele e no seu sucesso estão as bases para uma vida mais tranquila e menos belicosa, como se comprovou na Europa depois da II Guerra.
O caminho para a paz não é, e nunca foi, feito com mais armas e mais guerra; é feito de esperança, de diálogo e de diplomacia.
O resto, os discursos da guerra, não são mais do que prosa de folhetos publicitários dos que nela têm interesse económico e dos que para estes trabalham como seus representantes comerciais.