Ideias em Suspenso


Nem sempre os cientistas consagrados acolhem bem as ideias que entram em conflito com dogmas e conhecimento prévio. Este conservadorismo científico excessivo traduz-se normalmente na rejeição de artigos científicos, na recusa em financiar projetos arrojados e no ignorar de novos atores e suas ideias.


Muitas descobertas científicas revolucionárias foram inicialmente rejeitadas ou ignoradas pela ciência. A descoberta de que determinados vírus podem causar cancro por Francis Peyton Rous constitui um caso paradigmático deste ceticismo e falta de abertura da ciência instalada a novas ideias. Embora Rous tenha publicado os seus resultados e hipóteses em 1911, décadas passaram até as suas teses vingarem. O reconhecimento incontestável da descoberta dos chamados oncovírus e do contributo inestimável de Rous para a biologia do cancro surgiria apenas em 1966, com a atribuição do Nobel da Medicina. Este episódio mostra que a ciência nem sempre avança de maneira linear, e que algumas ideias e avanços precisam de tempo para serem acolhidas e se instalarem. E convida-nos a refletir sobre como equilibrar ceticismo e recetividade quando confrontados com descobertas e ideias que entram em conflito com o conhecimento institucionalizado.

Em 1911, um jovem patologista do Instituto Rockefeller, de nome Francis Peyton Rous, descobriu que podia transmitir um cancro particular injetando galinhas saudáveis com um extrato tumoral filtrado, livre de células cancerígenas e bactérias. Rous atribuiu a responsabilidade pela indução do cancro a um agente infecioso filtrável, que anos mais tarde viria a ficar conhecido como vírus do sarcoma de Rous (RSV) [1]. A sugestão de que um vírus podia provocar um tumor desafiou o paradigma vigente nas décadas de 1910 e 1920, que considerava o cancro uma doença puramente genética ou causada por agentes químicos. A descoberta de Rous constituía assim uma ameaça territorial para os cientistas dominantes na área, sendo quase natural que fosse desprezada [2]. Rous viria ainda a isolar agentes filtráveis responsáveis por outros dois tumores aviários. No entanto, em 1915, após várias tentativas falhadas para determinar a natureza do agente e desencorajado pela falta de reconhecimento da importância do seu trabalho, abandonou o estudo dos tumores aviários. Só muitos anos mais tarde voltaria a interessar-se pela investigação do cancro [1,2].

Os estudos de Rous da década de 1910 demonstraram claramente, pela primeira vez, que um tumor maligno poderia ser provocado por uma infeção. Nas décadas seguintes, outros oncovírus foram sendo progressivamente descritos, incluindo os vírus da hepatite B e do papiloma humano, que podem causar cancro do fígado e do colo do útero, respetivamente [1]. A descoberta do vírus RSV contribuiu de forma decisiva para a descoberta dos oncogenes (i.e., genes promotores do cancro) e para a elucidação dos mecanismos moleculares de desenvolvimento do cancro. O impacto do trabalho de Rous acabaria por valer-lhe o Nobel da Medicina em 1966, 55 anos após a sua descoberta pioneira. Aos 88 anos, tornou-se assim no mais velho galardoado de sempre da história dos prémios. Hoje, Rous é justamente reconhecido por ter fundado a virologia do cancro e por ter exercido uma influência determinante na investigação das doenças oncológicas.

Os exemplos de descobertas chave e ideias inovadoras que tardaram em impor-se não se esgotam com Rous e atravessam os séculos. Em 1847, a sugestão do médico Ignaz Semmelweis aos seus colegas para que lavassem as mãos como forma de reduzir a incidência de infeções nos seus pacientes foi ridicularizada. Nos anos 1980, o artigo de Kary Mullis descrevendo a técnica de PCR foi rejeitado pelas revistas científicas mais conceituadas do mundo, a Science e a Nature. E nos anos 1990, Katalin Karikó enfrentou recusas sistemáticas de financiamento à sua investigação em vacinas de mRNA que a levaram a quase desistir do seu trabalho [1]. Ainda assim, estes exemplos vieram a tornar-se casos de sucesso. Não podemos, no entanto, deixar de imaginar que existem grandes descobertas importantes do passado por revelar, que permanecem na obscuridade por terem sido rejeitadas, ridicularizadas ou ignoradas pelos cientistas iminentes e comissões especializadas da época.

O ceticismo é fundamental em ciência. No caso de descobertas revolucionárias, o escrutínio crítico pelos pares surge como forma de garantir conclusões baseadas em evidências confiáveis e evitar a propagação de ideias erradas ou infundadas. Esta abordagem ajuda a fortalecer a confiança pública na ciência. No entanto, casos como o do reconhecimento tardio da investigação de Rous, mostram que nem sempre os cientistas consagrados acolhem bem as ideias que entram em conflito com dogmas e conhecimento prévio [3]. Este conservadorismo científico excessivo traduz-se normalmente na rejeição de artigos científicos, na recusa em financiar projetos arrojados e no ignorar de novos atores e suas ideias. A rejeição de ideias inovadoras que contrariam as crenças estabelecidas pela comunidade científica ficou conhecida como paradoxo de Semmelweis [2]. As explicações para este fenómeno incluem fatores como a resistência cognitiva à mudança, viés de confirmação e obstáculos institucionais à adoção de novos paradigmas. No limite, retarda a aceitação de descobertas inovadoras e impede o avanço de investigações promissoras.  Em última análise, alcançar um equilíbrio entre o ceticismo científico que protege contra erros e conclusões apressadas, e a recetividade que permite que descobertas revolucionárias singrem, não é uma tarefa simples.

[1] Weiss, R.A., Vogt, P.K. (2011) 100 years of Rous sarcoma vírus. J. Exp. Med., 208:2351-2355.

[2] Ricón, J.L. (2020) Peer rejection in science, Nintil, https://nintil.com/discoveries-ignored/.

[3] Levin, M., Adams, D.S. (2016) Ahead of the Curve: Hidden breakthroughs in the biosciences. IOP Publishing Ltd.

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt

Ideias em Suspenso


Nem sempre os cientistas consagrados acolhem bem as ideias que entram em conflito com dogmas e conhecimento prévio. Este conservadorismo científico excessivo traduz-se normalmente na rejeição de artigos científicos, na recusa em financiar projetos arrojados e no ignorar de novos atores e suas ideias.


Muitas descobertas científicas revolucionárias foram inicialmente rejeitadas ou ignoradas pela ciência. A descoberta de que determinados vírus podem causar cancro por Francis Peyton Rous constitui um caso paradigmático deste ceticismo e falta de abertura da ciência instalada a novas ideias. Embora Rous tenha publicado os seus resultados e hipóteses em 1911, décadas passaram até as suas teses vingarem. O reconhecimento incontestável da descoberta dos chamados oncovírus e do contributo inestimável de Rous para a biologia do cancro surgiria apenas em 1966, com a atribuição do Nobel da Medicina. Este episódio mostra que a ciência nem sempre avança de maneira linear, e que algumas ideias e avanços precisam de tempo para serem acolhidas e se instalarem. E convida-nos a refletir sobre como equilibrar ceticismo e recetividade quando confrontados com descobertas e ideias que entram em conflito com o conhecimento institucionalizado.

Em 1911, um jovem patologista do Instituto Rockefeller, de nome Francis Peyton Rous, descobriu que podia transmitir um cancro particular injetando galinhas saudáveis com um extrato tumoral filtrado, livre de células cancerígenas e bactérias. Rous atribuiu a responsabilidade pela indução do cancro a um agente infecioso filtrável, que anos mais tarde viria a ficar conhecido como vírus do sarcoma de Rous (RSV) [1]. A sugestão de que um vírus podia provocar um tumor desafiou o paradigma vigente nas décadas de 1910 e 1920, que considerava o cancro uma doença puramente genética ou causada por agentes químicos. A descoberta de Rous constituía assim uma ameaça territorial para os cientistas dominantes na área, sendo quase natural que fosse desprezada [2]. Rous viria ainda a isolar agentes filtráveis responsáveis por outros dois tumores aviários. No entanto, em 1915, após várias tentativas falhadas para determinar a natureza do agente e desencorajado pela falta de reconhecimento da importância do seu trabalho, abandonou o estudo dos tumores aviários. Só muitos anos mais tarde voltaria a interessar-se pela investigação do cancro [1,2].

Os estudos de Rous da década de 1910 demonstraram claramente, pela primeira vez, que um tumor maligno poderia ser provocado por uma infeção. Nas décadas seguintes, outros oncovírus foram sendo progressivamente descritos, incluindo os vírus da hepatite B e do papiloma humano, que podem causar cancro do fígado e do colo do útero, respetivamente [1]. A descoberta do vírus RSV contribuiu de forma decisiva para a descoberta dos oncogenes (i.e., genes promotores do cancro) e para a elucidação dos mecanismos moleculares de desenvolvimento do cancro. O impacto do trabalho de Rous acabaria por valer-lhe o Nobel da Medicina em 1966, 55 anos após a sua descoberta pioneira. Aos 88 anos, tornou-se assim no mais velho galardoado de sempre da história dos prémios. Hoje, Rous é justamente reconhecido por ter fundado a virologia do cancro e por ter exercido uma influência determinante na investigação das doenças oncológicas.

Os exemplos de descobertas chave e ideias inovadoras que tardaram em impor-se não se esgotam com Rous e atravessam os séculos. Em 1847, a sugestão do médico Ignaz Semmelweis aos seus colegas para que lavassem as mãos como forma de reduzir a incidência de infeções nos seus pacientes foi ridicularizada. Nos anos 1980, o artigo de Kary Mullis descrevendo a técnica de PCR foi rejeitado pelas revistas científicas mais conceituadas do mundo, a Science e a Nature. E nos anos 1990, Katalin Karikó enfrentou recusas sistemáticas de financiamento à sua investigação em vacinas de mRNA que a levaram a quase desistir do seu trabalho [1]. Ainda assim, estes exemplos vieram a tornar-se casos de sucesso. Não podemos, no entanto, deixar de imaginar que existem grandes descobertas importantes do passado por revelar, que permanecem na obscuridade por terem sido rejeitadas, ridicularizadas ou ignoradas pelos cientistas iminentes e comissões especializadas da época.

O ceticismo é fundamental em ciência. No caso de descobertas revolucionárias, o escrutínio crítico pelos pares surge como forma de garantir conclusões baseadas em evidências confiáveis e evitar a propagação de ideias erradas ou infundadas. Esta abordagem ajuda a fortalecer a confiança pública na ciência. No entanto, casos como o do reconhecimento tardio da investigação de Rous, mostram que nem sempre os cientistas consagrados acolhem bem as ideias que entram em conflito com dogmas e conhecimento prévio [3]. Este conservadorismo científico excessivo traduz-se normalmente na rejeição de artigos científicos, na recusa em financiar projetos arrojados e no ignorar de novos atores e suas ideias. A rejeição de ideias inovadoras que contrariam as crenças estabelecidas pela comunidade científica ficou conhecida como paradoxo de Semmelweis [2]. As explicações para este fenómeno incluem fatores como a resistência cognitiva à mudança, viés de confirmação e obstáculos institucionais à adoção de novos paradigmas. No limite, retarda a aceitação de descobertas inovadoras e impede o avanço de investigações promissoras.  Em última análise, alcançar um equilíbrio entre o ceticismo científico que protege contra erros e conclusões apressadas, e a recetividade que permite que descobertas revolucionárias singrem, não é uma tarefa simples.

[1] Weiss, R.A., Vogt, P.K. (2011) 100 years of Rous sarcoma vírus. J. Exp. Med., 208:2351-2355.

[2] Ricón, J.L. (2020) Peer rejection in science, Nintil, https://nintil.com/discoveries-ignored/.

[3] Levin, M., Adams, D.S. (2016) Ahead of the Curve: Hidden breakthroughs in the biosciences. IOP Publishing Ltd.

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt